Pop e experimental são duas palavras aparentemente opostas, mas que podem ser igualmente atribuídas ao trabalho de Felipe Hirsch, 48 anos, um dos mais importantes diretores de teatro e cinema do país. Embora já tenha trabalhado com gigantes como Paulo Autran (em O Avarento, de Molière, em 2006) e Fernanda Montenegro (Viver Sem Tempos Mortos, sobre Simone de Beauvoir, em 2009), é conhecido sobretudo pela carreira no coletivo Ultralíricos, criado em 2013, e, antes, na Sutil Cia. de Teatro (1993-2012), de sucessos como A Vida É Cheia de Som e Fúria (2000), baseado em Nick Hornby. Partindo de canções de Tom Zé, o mais recente trabalho da Ultralíricos, Língua Brasileira, abriria o 27º Porto Alegre em Cena, mas a pandemia levou à mudança de planos. Com a emergência sanitária, o festival foi reformatado, e Hirsch participou de um bate-papo com os colegas de grupo Daniela Thomas e Felipe Tassara. Nesta entrevista, Hirsch explica por que não enveredou pelo “teatro digital”, critica a concentração da produção audiovisual em poucas plataformas de streaming e comenta a situação política no Brasil.
Você é um dos convidados de uma edição diferente do Porto Alegre em Cena, com espetáculos criados para plataformas digitais e outros formatos distintos. Como é a situação de não poder se apresentar em uma sala de espetáculo com casa cheia?
Não tenho o menor pudor de dizer que acho horrível (risos). Temos que improvisar algum tipo de celebração – não comemoração –, afinal, estamos vivos, conversando sobre arte. São válidos os esforços de curadores como os do Em Cena para fazer a melhor programação possível. Mas obviamente ficamos nos sentindo limitados, pois o teatro é uma arte presencial. Estamos fazendo alguns filmes sobre teatro, alguns melhores, outros piores. Mas não gosto nem da ideia de me acostumar com isso. Não tenho feito (teatro em meios digitais). Prefiro fazer essas conversas e entrevistas a alguma realização “teatral” filmada. Já faço cinema. Se é para ser assim, vou fazer cinema. Veja que não sou conservador sobre o que é cinema ou teatro. Não é que essas fronteiras para mim estejam delineadas a ponto de não atravessá-las. Mas, se é para fazer as peças assim, gostaria de pensar desde o início em uma produção do tipo. Acho engraçado as pessoas perguntarem: “Será que o teatro vai resistir a isso (à pandemia)?”. O teatro não é uma coisa do século 20, como o cinema. É milenar. Resistiu a todas as guerras de que se tem notícia. Talvez o teatro dessa geração possa ser limitado, mas não é nada perto da história. O teatro vai se preservar.
Esses novos formatos de espetáculos não lhe interessam nem mesmo como espectador?
Como espectador, menos ainda. Não estou dizendo que seja impossível pensar em obras com formatos híbridos de cinema com teatro e artes plásticas. É o que tenho feito na minha vida. O que estou dizendo é que, por causa da pandemia, tudo isso foi feito sem perspectiva nenhuma. Portanto, improvisou-se com o que se poderia fazer. Não é uma opção, é uma falta de opção (risos). A partir do momento em que se torna uma opção, acho que podemos criar, aí sim, obras interessantes para esse formato. Das coisas que vi, acredito que todos esses artistas estariam fazendo trabalhos muito interessantes se estivessem com toda a liberdade, com os limites plenos de atuação que tinham antes. Mas de maneira alguma isso é uma condenação do que tem sido feito. É só uma característica, uma situação que temos de enfrentar por um tempo até que as coisas voltem a ser o que eram antes. Já existia (antes da pandemia) um momento de transição de linguagem que afeta o teatro e o cinema, da forma como os conhecemos.
A que fenômeno você se refere?
Aos streamings, que são uma falsificação da ideia de on demand (“sob demanda”). Na verdade, você não tem à disposição o que quer naquele momento; tem o que está sendo investido para consumo. Todos os artistas de teatro e cinema no Brasil, hoje, estão reféns de cinco ou seis corporações, como Netflix, Globoplay, HBO, Disney, Amazon e Apple, que ditam um mercado inteiro de roteiristas, cineastas, dramaturgos. Não considero isso uma coisa boa. Na época do Napster (programa de compartilhamento de músicas criado em 1999), lembro de gente com pena das corporações: “Como elas vão fazer agora que não se paga mais por música?”. E rapidamente o mercado se estabeleceu de novo nas mãos de poucos. Isso afeta o teatro. Em uma cidade como São Paulo, onde as pessoas têm medo de sair na rua por causa do trânsito, da violência, de protestos, de uma série de coisas, elas ficam sentadas no sofá, pedindo comida e vendo televisão. Esquecem que, por melhor que seja o aparelho de TV, nunca vai ser a experiência de um cinema ou de um teatro. O teatro é um exercício sensorial, o cinema também. Você não tem todos os seus sentidos em plena atividade quando está em seu sofá, assistindo a essas séries medianas. E outra coisa: entramos em uma onda dos artistas louvarem essas séries como se fossem de grandes escritores. Na verdade, são grandes fórmulas aplicadas à escrita. O Brasil fica tentando fazer simulacros de séries americanas e não vai conseguir nunca. É como americano tentando tocar bossa nova. Temos de fazer séries brasileiras, e não simulacros de séries americanas, pois nunca vamos fazer tão bem quanto eles, ainda que eu achasse que o que eles fazem seja bom. Não acho. É medíocre, aquele visual é cafona. Existem exceções, grandes artistas? Existem. Mas não é o geral.
Acho engraçado as pessoas perguntarem: 'Será que o teatro vai resistir a isso (à pandemia)?'. O teatro não é uma coisa do século 20, como o cinema. É milenar. Resistiu a todas as guerras de que se tem notícia. Talvez o teatro dessa geração possa ser limitado, mas não é nada perto da história. O teatro vai se preservar.
Se você pudesse imaginar uma utopia, qual seria a alternativa ideal a essa concentração do streaming na mão de poucas corporações?
Utopicamente, essas corporações deveriam entender o país onde estão comercializando. As pessoas nas suas diretorias deveriam selecionar projetos que tivessem de alguma maneira a cara do país, e não ficar colocando goela abaixo produtos medianos americanos. Veja, sou fã da cultura americana, cresci com ela, mas não é dessa cultura americana que sou fã. Utopicamente, a situação ideal dos streamings seria dar liberdade aos artistas para que criassem séries com a nossa cara. Há alguns poucos exemplos disso, mas no geral o que o artista brasileiro de audiovisual tem tentado fazer é falar bem de séries americanas que não dão nem para a saída (em termos de qualidade).
Muitos filmes clássicos brasileiros e europeus estão em um certo limbo, pois não são encontrados nos principais serviços de streaming e, por outro lado, praticamente não temos mais lojas e locadoras de DVDs.
Não tem em serviços on demand, em nada. Não se tem acesso ao Cinema Novo, mas nem falo disso. Falo de 8 1/2, do Fellini, ou de filmes novos, do Jia Zhang-ke ou dos (irmãos) Dardenne. Isso para falar de filmes de fora. Nem mesmo os clássicos americanos estão disponíveis nesses streamings. De repente, aparece um filme europeu com certa qualidade, e todos os artistas falam: “Você viu tal filme?”. Todo mundo vê o mesmo filme. Isso é perigoso. De alguma maneira, é uma manipulação, um direcionamento que não nos abre a cabeça, não nos traz ideias novas.
Às vezes, quando alguém diz que tem uma série nova para recomendar, você quase consegue adivinhar qual é.
É o que vejo todo dia. Tenho 48 anos. Converso com pessoas de 20 e poucos ou 30 e poucos que falam esse tipo de coisa. São pessoas no auge de sua vitalidade intelectual e emocional dizendo que maratonaram tal série que é maravilhosa. Pelo amor de Deus. Já tínhamos desenvolvido uma capacidade crítica enorme.
O Brasil fica tentando fazer simulacros de séries americanas (de televisão) e não vai conseguir nunca. É como americano tentando tocar bossa nova. Temos de fazer séries brasileiras, e não simulacros de séries americanas, pois nunca vamos fazer tão bem quanto eles, ainda que eu achasse que o que eles fazem seja bom. Não acho. É medíocre, aquele visual é cafona.
Em 2018, a Cia. Ultralíricos trouxe ao Porto Alegre eem Cena o espetáculo A Tragédia e a Comédia Latino-americana, que aglutinava duas peças, partindo das obras de diferentes escritores latino-americanos. Na sua visão, qual é o lugar do Brasil na América Latina?
A Tragédia e A Comédia nos aproximaram de um sem-número de autores de toda América Latina, inclusive do Brasil. Quando falamos na região, sempre temos de dizer “inclusive o Brasil”, porque o Brasil não se inclui. As pessoas me perguntavam: “Está fazendo coisas em espanhol?”. Na verdade, usamos vários autores brasileiros. Durante esse processo, escrevi uma série que está inédita e que há pouco voltou à minha mão. A Globo me deu liberdade, mal sabiam o que estavam fazendo. Sou agradecido pela coragem deles, porque escrevi uma série com 20 autores latino-americanos. (João Gilberto) Noll, que estava vivo, Alan Pauls, Alejandro Zambra, Juan Villoro, (Leonardo) Padura. É uma série linda sobre essa relação entre a América Latina e a América rica, que são os EUA.
No Brasil, costuma ser mais fácil importar um livro dos EUA do que de um país vizinho, e muita gente entende mais inglês do que espanhol. O que isso diz sobre nossa relação com a América Latina?
O Brasil, em especial as classes mais ricas, se mira nos EUA. Há outros países latinos que têm essa característica e consideram seus vizinhos kitsch. Só que, com isso, perdem uma riqueza cultural, histórica e artística inigualável. A América Latina é e poderia ser ainda mais uma protagonista no mundo. Por todo o caos e a beleza que existem. Por toda originalidade que há no encontro desses povos. Para além da tragédia, isso deu também em graça e em beleza. Os países de língua espanhola têm uma comunicação maior entre si, óbvio, mas não plena de entendimento. O Brasil é um gigante desconhecido para eles. Conhecem algo do que fazemos de mais belo na música popular e também uma música, digamos, esquecível. Sabem pouco sobre nossos escritores. Mas há exceções. Quem sabe muito sobre literatura brasileira é o César Aira, que fez o Dicionário de Autores Latino-americanos. Os verbetes brasileiros são mais interessantes do que a maioria dos nossos livros sobre literatura brasileira.
Apesar de seus espetáculos poderem ser chamados de “experimentais”, não são herméticos a ponto de fechar portas para o público. As três horas de A Tragédia e Comédia Latino-americana passavam muito rápido e havia momentos engraçados. Como você entende a importância da comunicação com o público?
Lembro que uma vez um grande amigo meu deu uma entrevista à Folha de S. Paulo falando que queria fazer obras populares e não mais uma obra numa sala de teatro para 15 pessoas. Fiquei chateado, falei para ele isso. Me pareceu uma ingratidão com todos que fizeram obras experimentais para 15 pessoas e que hoje foram adotados, não digo pelo mainstream, mas como influência por grandes artistas. Somos filhos do Cinema Novo, que na maioria das vezes não teve plateias gigantescas. Somos filhos de A Aventura (1960), do Antonioni, que foi vaiado no Festival de Cannes. Somos descendentes de artistas plásticos que experimentaram com videoinstalação, manifestos como o do (Hélio) Oiticica. Mais experimental ou menos, tudo me interessa. E acho que é um pouco o talento da plateia também. Quando a plateia é interessada, é capaz de absorver uma experimentação. Todos nós temos essa sensibilidade, mas quando você está disposto a ela, está disposto a se relacionar com o que lhe parece novo no momento.
E quanto à questão do humor nos seus espetáculos?
Amo fazer o público rir. De alguma maneira, é uma das manifestações mais queridas em relação a um trabalho. Estar junto, respirar junto, rir junto. Existe aquela coisa tão anos 1980 de discutir se você faz uma obra pensando no público ou não. Na verdade, é um todo. Você faz uma obra pensando na obra. Ela é algo experimentado por aqueles artistas, mas que têm interlocutores. A interlocução com o público é uma ponta importantíssima da criação.
O que essa era construiu foi um espelho quebrado da sua própria história. Transformou boa parte da população em um exército de pessoas que atiram contra a própria história, contra seus artistas, seus cientistas, historiadores. A ‘Queermuseu’ foi um marco nisso tudo.
Os gaúchos tiveram o prazer de assistir, em 2011, ao monólogo Viver Sem Tempos Mortos, com Fernanda Montenegro, dirigido por você. Na época, você já era um diretor reconhecido, mas de uma geração bem mais nova do que a de Fernanda. Como se dirige uma artista como ela?
Foi um convite muito carinhoso da Fernanda, porque há muito tempo conversávamos sobre trabalhar juntos. Foram uns oito anos até decidirmos o que fazer. Ela assistia às minhas peças sempre de maneira muito interessada e carinhosa, e eu admirava a Fernanda como tudo que eu podia admirar de mais importante. Foi uma época difícil quando começamos a trabalhar nesse espetáculo porque ela tinha acabado de perder o Fernando Torres, e eu, muito mais jovem, também passava por um momento razoavelmente difícil, com crises de pânico. Fomos ensaiar em uma sala de três por três metros, só eu e ela. Lembro que tinha uma mesa com coisas que comíamos durante o dia, porque ensaiávamos por 12 horas, das 13h à 1h. Ao trabalhar com a Fernanda, qualquer segundo é extraordinário. Ela é inabalável. Repetíamos a peça três, quatro vezes. Sei que, quando ela acordava no meio da noite, passava o texto sozinha. Ela é assim.
Ou seja, ela nunca deixou a consagração subir à cabeça.
Fica nervosa a cada vez que vai entrar no palco. Tenho vontade de perguntar: “Fernanda, você não sabe que eles amam você? Trouxeram flores”. Nunca tinha visto isso: na temporada do Sesc Anchieta (em São Paulo), as pessoas levavam rosas brancas e jogavam no palco. Mas é como se ela tivesse o mesmo nervosismo de quando começou a fazer aquilo. Acho que era por esse canal que nos comunicávamos: um canal amador. Também tenho muito ligado a mim esse primeiro acender da paixão pela arte. Ela carrega isso consigo. Paulo José e Paulo Autran também. Trabalhei com muitos desses artistas mais velhos. Os grandes diretores que mais admiro, como (Antônio) Abujamra, Antunes (Filho) e Aderbal (Freire-Filho) me ensinaram isso. Eram amadores. Nenhum deles se virou para mim e falou “isso já sei fazer” ou “isso não me interessa”. Tinham a curiosidade em relação à vida que nos faz experimentar.
Desde os ataques à exposição Queermuseu, em Porto Alegre, em 2017, uma onda moralista vigia a produção artística no país. parte da sociedade adotou uma visão negativa sobre os artistas. Como você sente isso?
Só em uma era obscurantista, como a imposta por Trump e Bolsonaro, podemos supor uma sociedade que não respeita seus próprios artistas. E não só artistas: historiadores, cientistas. É uma época de obscurantismo. Os que se dizem conservadores não têm nada de conservadores. Conservadores, hoje, somos nós que queremos conservar nossa mata, nosso país, algum contato com a verdade. Eles são usurpadores, corrompidos, fascistas. O que essa era construiu foi um espelho quebrado da sua própria história. Transformou boa parte da população em um exército de pessoas que atiram contra a própria história, contra seus artistas, seus cientistas, historiadores. A Queermuseu foi um marco nisso tudo. Vivemos em um país que perpetua a escravidão. Que aceita os índios como eram vistos pelos colonizadores, e não como povo nativo desta terra. Precisamos encarar de frente esses fantasmas. Os movimentos estão aí para isso. Mas tem uma enorme parte de brasileiros que ama seus artistas. Temos artistas queridos inclusive da classe média, de quem tanto se fala que seria a classe mais “conservadora”. A grande maioria da classe média sabe amar Chico Buarque e Caetano Veloso.
Há uma crítica de que os segmentos democratas e progressistas estão fragmentados e com dificuldade de se articular como uma alternativa de escolha política. Qual é a sua avaliação sobre isso?
Há as pessoas que veem de maneira mais estratégica essa união entre progressistas e democratas, de esquerda ou direita, e há quem veja de maneira mais fragmentada. Acho que o caso é outro agora. É um caso de urgência. É necessário, sim, um pensamento estratégico. É hora de uma oposição à barbárie, ao obscurantismo. Não podemos perder a confiança no humanismo, no progresso, no diálogo. O Brasil vota em fenômenos. Votou no caçador de marajás, no (Plano) Real, no Lula, que é um fenômeno, votou na família Bolsonaro. Temos de entender o que estamos vivendo para não cair mais nesse buraco. Para isso, precisa de estratégia, de pensamentos às vezes díspares, mas que estejam dentro de um campo democrático, de uma compreensão de que o Brasil é um país melhor do que Bolsonaro. E que o povo do Brasil, ainda que tenha votado nele, é melhor do que Bolsonaro.