Desde que estreou na crônica, em 19 de abril de 1969, na coluna Informe Especial, de Zero Hora, Luis Fernando Verissimo acumula uma produção imensa no gênero – em tamanho e qualidade reconhecida. Parte significativa dessa obra, publicada originalmente em diversos jornais e livros, foi reunida em Verissimo Antológico – Meio Século de Crônicas (ou Coisa Parecida), que acaba de chegar ao mercado.
Os textos apresentados nas mais de 700 páginas estão divididos por décadas e têm como novidade a companhia de ficções curtas, além de algumas crônicas inéditas que compõem pequenos conjuntos temáticos, o que constitui uma espécie de linha narrativa contínua – “ou coisa parecida”, poderia dizer o autor, com sua usual perspicácia disfarçada de despretensão.
– Não reli os textos antes da publicação nem participei da escolha das crônicas. De muitas eu nem lembrava mais. Estou preparado para surpresas, boas e más – explica Verissimo, em entrevista concedida por e-mail.
A antologia teve seleção de Daniela Duarte, Fernanda Verissimo e Marcelo Dunlop e conta com uma apresentação que na verdade é um artigo de Moacyr Scliar (1937-2011) de 2001 que resume estilo e pertinência do autor nesse gênero tão associado à fugacidade mas capaz de ser profundamente reflexivo: “Verissimo escreve como quem respira, mas esta respiração é sobretudo inspiração. De sua inteligência e cultura brotam sem cessar ideias originais, que alargam o horizonte cultural dos leitores. E, principalmente, fazem a nossa vida melhor. O Brasil de Luis Fernando Verissimo é o Brasil autêntico, o Brasil criador, o Brasil no qual podemos ter esperança”.
Aos 83 anos, vivendo “asilado em casa”, como define, ele respondeu as seguintes questões sobre o livro, a crônica, o humor e, também, o país hoje.
A crônica é um gênero muitas vezes associado ao noticiário cotidiano, em certos casos funcionando como um comentário das notícias. É mais adequado a tempos de pandemia, crises institucionais e turbulência política? Ou, lembrando uma expressão que o senhor já usou para apresentar suas poesias: crônica numa hora dessas? Por quê?
A crônica é sempre um comentário, uma opinião pessoal. O estilo da crônica, o "approach", em bom português, depende do assunto e do humor do cronista. Você não pode escrever sobre tragédias como escreve sobre amenidades, o que explica a dificuldade em ser engraçado no Brasil hoje. Só no Brasil, não. No mundo.
O senhor costuma recorrer com frequência à ficção quando escreve crônica. Por quê?
A crônica pode ser o que você quiser. A melhor definição que conheço é: "crônica é o que você chamar de crônica", seja ficção ou não ficção. Muitas vezes recorre-se à ficção para fazer um comentário na forma de metáfora ou sátira, por exemplo. Aí passa a ser uma ficção com segundas intenções.
Alguma crônica com a qual o senhor se reencontrou depois de muito tempo da publicação teve o sentido alterado com o passar dos anos? Há textos seus escritos ao longo de cinco décadas, é natural que as pessoas mudem nesse grande espaço de tempo.
Uma coisa que sempre me espanta na leitura de algumas crônicas antigas minhas é a dimensão dos textos. Não sei se, com o tempo, fiquei mais conciso ou mais preguiçoso.
Como é o seu reencontro com uma crônica como Errata, repleta de trocadilhos e de um humor bastante escrachado? Para o leitor a graça não se perde, mas e para o autor do texto? É possível rir de seus próprios escritos tanto tempo depois?
Gosto de pensar que os textos bons serão lembrados e os ruins, esquecidos, mas não se pode esperar admiração eterna para os bons e misericórdia para os ruins. Pela minha experiência, nem a admiração nem a ojeriza duram mais do que uma noite forrando a gaiola do papagaio. Nossa auto-apreciação não vem ao caso, se o leitor ao menos entender a piada já nos sentimos recompensados.
Lembrando a mesma expressão da primeira questão e a pertinência dos textos cômicos nestes tempos atuais: por que humor pode ser importante numa hora dessas como a que estamos vivendo?
Eu acho que estamos vivendo uma era que nada redime, nem o humor. Nem a exortação otimista de um Buzz Lightyear, do (filme) Toy Story: "Para o infinito... e além!". Não tem mais nem além.
Na crônica Falso Entendido, o senhor faz referência a essa figura, como escreve, "fascinante" que "não sabe nada de nada mas sabe os jargões". É uma figura atemporal. Há textos mais conectados com o momento, como O Pior Crime, sobre os sem-terra durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O quanto a perenidade do texto está ligada ao tema?
É claro que o tema determina o estilo e a pretensão da crônica. Mas não acho que existam temas que devam ser abordados solenemente, de gravata. Pode-se usar qualquer estilo para tratar de qualquer tema, desde que não se sacrifique a criatividade pela "seriedade".
Eu sempre digo que, no Brasil, o fundo do poço é apenas uma etapa.
O senhor escreveu uma crônica sobre a timidez nos anos 1980, muito antes da popularização da expressão "lugar de fala". Brincadeiras à parte, textos como esse, que falam sobre questões íntimas do autor, tiveram algum tipo de efeito terapêutico? Olhando em perspectiva, anos depois, pode-se dizer que algum texto o ajudou nesse sentido?
Confesso que não sei o que significa "lugar de fala". Preciso me atualizar. Quanto a, vez por outra, falar sobre o meu próprio umbigo, penso que existe um interesse moderado pelo assunto. E um umbigo, desde que encarado com bom gosto e senso estético, pode ser fascinante.
Atualmente parece haver mais consciência de raça e gênero, e o humor que apela a estereótipos tem sofrido com isso. Como o senhor vê essa situação?
Penso que houve um avanço . Estereótipos raciais e sociais como o homossexual exagerado, o judeu usurários o negro caricato etc. aparecem cada vez menos em programas humorísticos na TV. Aos poucos, nos civilizamos.
Como tem sido sua rotina durante a pandemia?
Asilado em casa. Uma sensação estranha.
Com os gestos recentes de Jair Bolsonaro, o senhor está preocupado com a democracia no Brasil?
Eu sempre digo que, no Brasil, o fundo do poço é apenas uma etapa.