Ainda em cartaz nos cinemas, na sessão das 19h da Sala Eduardo Hirtz, Dias Perfeitos (Perfect Days, 2023) estreia nesta sexta-feira (12) na plataforma de streaming MUBI. Se você não viu, fica a dica: talvez não haja filme mais bonito entre os que estrearam no Brasil nestes primeiros cem dias do ano.
É um filme hipnotizante, como alguém já disse em algum lugar. Entramos em um transe e não queremos que acabe a história, queremos continuar acompanhando os personagens do longa-metragem que representou o Japão no Oscar internacional, mas foi dirigido por um alemão, Wim Wenders, e tem trilha em inglês — canções de Lou Reed, Patti Smith, Van Morrison e Nina Simone, entre outros, pontuam a trama.
Wenders, 78 anos, é um dos mais celebrados cineastas de seu país. Seu currículo inclui O Estado das Coisas (1982), ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza; Paris, Texas (1984), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes; Asas do Desejo (1987), que valeu o troféu de direção na mostra francesa; Tão Longe, Tão Perto (1993), Grande Prêmio do Júri em Cannes; e O Hotel de um Milhão de Dólares (2000), Urso de Prata no Festival de Berlim. Concorreu três vezes ao Oscar de melhor documentário, por Buena Vista Social Club (1999), Pina (2011) e O Sal da Terra (2015, com o brasileiro Juliano Ribeiro Salgado, filho do fotógrafo Sebastião Salgado).
Com roteiro coescrito por Takuma Takasaki, Dias Perfeitos nasceu como mais um documentário do realizador, que em 2018 lançou Papa Francisco: Um Homem de Palavra e em 2023 retratou o pintor e escultor alemão Anselm Kiefer (Anselm: O Som do Tempo). O cineasta foi convidado para realizar uma série de curtas-metragens sobre o projeto The Tokyo Toilet, que redesenhou 17 banheiros públicos na capital do Japão para torná-los um símbolo da hospitalidade do país asiático. A exemplo do que aconteceu com Asas do Desejo, concebido incialmente como uma obra documental sobre a Berlim às vésperas da queda do muro, Wenders transformou a ideia em uma ficção.
— Adorei seus banheiros, mas, ainda mais, amo Tóquio. E por isso gostaria de fazer um filme que tratasse dos banheiros num sentido mais metafórico. No sentido do bem comum que tanto prezo aqui — disse Wenders em entrevista ao AnOther Magazine.
Na mesma entrevista, ele contou sobre como, na metade dos anos 1970, ficou "abalado" pela delicadeza da obra do diretor japonês Yasujiro Ozu (1903-1963), autor de, entre dezenas de títulos, Pai e Filha (1949), Era uma Vez em Tóquio (1953) e A Rotina Tem seu Encanto (1962). Como retribuição, em 1985 o alemão visitou o Japão para rodar Tokyo-Ga, documentário em que explora as marcas de Ozu a partir de entrevistas com alguns de seus principais colaboradores: o diretor de fotografia Yuharu Atsuta e o ator Chishu Ryu. Em 1991, Ryu participou de uma ficção de Wim Wenders, em um segmento de Até o Fim do Mundo. Em 2009, o cineasta publicou Journey to Onomichi, um projeto fotográfico sobre sua viagem à cidade costeira que aparece em Era uma Vez em Tóquio.
Agora é a vez de Dias Perfeitos, filme em que Wenders reverencia seu mestre e nos propõe a imersão na cultura japonesa, com seu senso de ordem e harmonia, e no cotidiano de Tóquio. Por suas avenidas largas e seus viadutos quilométricos, circula uma caminhonete embalada por músicas como Pale Blue Eyes (The Velvet Underground) e Brown Eyed Girl (Van Morrison), Redondo Beach (Patti Smith) e Perfect Day (Lou Reed), que tocam nas fitas-cassete escutado pelo protagonista no deslocamento para o trabalho. Trata-se do sessentão Hirayama, personagem quase calado que valeu a Koji Yakusho, de Dança Comigo? (1996), Babel (2006) e 13 Assassinos (2010), o troféu de melhor ator no Festival de Cannes. Um prêmio absolutamente justificado, vide a cena de dois minutos em que o diretor de fotografia Franz Lustig fixa a câmera no rosto de Yakusho, que, sem dizer uma só palavra, transmite uma gama de emoções, evocando lembranças, desejos e, quem sabe, arrependimentos.
Homônimo do personagem encarnado por Chishu Ryu em Era uma Vez em Tóquio, Hirayama é o dedicadíssimo faxineiro dos banheiros públicos situados em parques e praças. Leva uma vida solitária e metódica (o que inclui comer no mesmo restaurante o prato de sempre), mas seu sorriso ao abrir a porta de casa e mirar o céu evidencia: este é um homem que aprendeu a extrair prazer da contemplação, completude do despojamento, alegria das coisas simples da vida — como um jogo da velha disputado ao longo de dias com um frequentador anônimo de um toalete ou uma brincadeira em que dois adultos tentam capturar a sombra um do outro.
Hirayama é um homem deslocado de seu tempo. Em um mundo tão apressado, tão afoito pelo novo, tão materialista, tão dependente da tecnologia e tão dominado pelo instantâneo, ele vive uma espécie de utopia particular. Além de escutar canções das décadas de 1960 e 1970 no toca-fitas, compra livros usados por US$ 1 em um sebo e tem como hobby a fotografia analógica. Até seus sonhos são em preto e branco.
Esses sonhos, contudo, são fragmentados, um tanto obscuros e até perturbados. Parecem indicar que Hirayama já foi um outro homem. Encontros inesperados vão trazer à tona um pouco do passado do protagonista.
Mas Wim Wenders não está interessado no passado de seu protagonista, nem Hirayama olha para o futuro. Vive só o presente — a certa altura, vai repetir, como um mantra: "A próxima vez é a próxima vez. Agora é agora". Não à toa, a cada intervalo de almoço no banco de uma praça ele busca registrar com sua antiga câmera Olympus o komorebi, palavra japonesa que designa a beleza da combinação de raios de luz e sombras dançantes provocada pela passagem do sol pelas folhas de uma árvore que farfalham por causa do vento. Suas fotos são todas parecidas, mas nunca iguais, porque cada momento é único.
Cada dia pode ser parecido, mas nunca igual ao anterior. Cada dia merece ser vivido e curtido: se não em um parque, podemos encontrar komorebi enquanto assistimos a um filme como Dias Perfeitos.