O diretor carioca Luiz Fernando Carvalho, 63 anos, celebrizou-se por verter obras literárias para a televisão e o cinema. São dele, por exemplos, o telefilme Uma Mulher Vestida de Sol (1994), baseado em romance homônimo de Ariano Suassuna, o longa-metragem Lavoura Arcaica (2001), versão da obra de Raduan Nassar, e as minisséries Os Maias (2001), que adapta o clássico de Eça de Queirós, A Pedra do Reino (2007), outro trabalho a partir de um texto de Suassuna, Capitu (2008), inspirado no Dom Casmurro de Machado de Assis, e Dois Irmãos (2017), que levou para a TV o livro de Milton Hatoum.
Agora, no seu retorno ao cinema após mais de 20 anos, Carvalho assina A Paixão Segundo G.H. (2023), que ele não chama de adaptação, mas de uma "aproximação" do denso livro publicado em 1964 por Clarice Lispector (1920-1977). Em cartaz no CineBancários, no GNC Moinhos e na Sala Eduardo Hirtz a partir desta quinta-feira (11), o filme traz Maria Fernanda Cândido no papel da mulher que, sozinha em um enorme apartamento de Copacabana, no Rio, tem de lidar com as reflexões e as angústias despertadas pela partida de sua empregada doméstica e por deparar com uma barata no quarto de serviço. "Diante do inseto, G.H. vive sua via-crúcis existencial", diz a sinopse oficial. "A experiência narra a perda de sua identidade e a faz questionar todas as convenções sociais que aprisionam, até hoje, o feminino."
Ao longo de duas horas, Maria Fernanda declama praticamente todo o texto escrito por Clarice, com algumas mudanças na ordem. Variando cenários e enquadramentos, lançando mão de elementos sonoros (a trilha musical, os ruídos) e de recursos da montagem, Carvalho procurou transformar um fluxo de pensamento labiríntico e com pouquíssimos acontecimentos em uma narrativa cinematográfica _ no mínimo, em uma experiência cinematográfica, que pode ser entediante ou até exasperante para alguns espectadores, poética e talvez divina para outros.
"A Paixão Segundo G.H." segundo Luiz Fernando Carvalho
Na tarde de terça-feira (9), por meio do aplicativo Zoom, o diretor Luiz Fernando Carvalho falou com a coluna sobre os desafios, os prazeres e as palavras do filme A Paixão Segundo G.H.:
Em uma entrevista ao jornal português O Público, você refutou a ideia de que seria impossível uma adaptação cinematográfica de A Paixão Segundo G.H.: "Se me afeta, é filmável".
Não gosto dessa classificação de o que é filmável e o que não é filmável. Quer dizer que existem as pessoas que a gente pode se aproximar e as pessoas que a gente não pode se aproximar? Existe a rua em que a gente pode entrar e a rua em que a gente não pode entrar? Existe o filme que todos poderão filmar e assistir e aqueles que não, não podem? Existem as baratas cinematográficas, né? A Paixão Segundo G.H. desconstrói toda a ordem daquilo que é permitido, consagrado pelo mercado cinematográfico global, pela cosmopolítica cinematográfica global, como o que deve ser filmado.
Por que levar o livro de Clarice Lipector para o cinema?
Bom, já que a última vez em que nos falamos foi por causa do Lavoura Arcaica (clique aqui para ler a entrevista), talvez a minha resposta esteja ligada a essa ideia da continuação. Continuar é muito importante, né? Continuar estranho no mundo. Esses seres estranhos como Raduan Nassar e Clarice Lispector me interessam. Eles estão fora da curva, fora do eixo do mundo, eles estão excluídos do mundo, são considerados seres estrangeiros, seres que escreveram em outras línguas, e eu me conecto com eles e sigo de mãos dadas com eles.
Você diz que Raduan e Clarice escreveram em outras línguas. Percebe-se, tanto em Lavoura Arcaica quanto em A Paixão Segundo G.H., que você é um profissional da imagem que valoriza muito a palavra, certo?
Eu reivindico a palavra como um elemento que é central na construção da linguagem cinematográfica. A palavra, isso mesmo, a palavra, o vocábulo. Não vejo nenhuma disputa de território colocada nisso em relação às imagens. Elas não disputam território, muito ao contrário. Reivindico a palavra lado a lado com as imagens, respeitando as alteridades de uma e outra. Produzo um acontecimento, um encontro, vamos dizer assim, entre essas duas alteridades, que são realmente de subjetividades diferentes. Mas a partir desse encontro, dessa fricção, dessa tensão, desses afetos, palavras e imagens produzem um corpo, um corpo que eu não sei que nome tem, que gênero tem, que classificação teria, e esse corpo é o próprio filme.
Ainda falando em palavra, como foi o processo de encontrar a voz da protagonista, a entonação para cada parte desse grande monólogo da personagem?
Em primeiro lugar, eu não acredito na ideia do monólogo. Para mim, é um grande diálogo entre os vários eus. Eu poderia, inclusive, estruturar esse filme com várias atrizes e não apenas uma. É um diálogo entre as várias G.H.s e, no caso, as várias Marias Fernandas, vozes que se desdobram infinitamente. E cada G.H. vai encontrar a sua entonação. Estudamos o romance com a ajuda de especialistas na obra, porque eu não me considero um especialista em Clarice, não pretendo ser, sou apenas um artista que se aproximou de um determinado livro. Sempre entendi o relato como um relato polifônico. E dentro dessa polifonia você identifica três vozes principais. A primeira é a voz que está ligada à ação da personagem, levantar da mesa, ir em direção ao quarto da Janair. A segunda voz é a que pensa enquanto age, as reflexões dessa pessoa que está agindo. A terceira voz é a do dia seguinte, a que tenta dar conta da experiência vivida no dia anterior. A partir dessas três vozes, e com todos os elementos sonoros que compõem o filme, temos essa polifonia que eu pretendi exercitar. As vozes são apenas um dos elementos sonoros do filme. Elas contracenam com os ruídos da máquina de lavar, do elevador, os sons do violino, do piano, das orquestras, dos sinos, dos relâmpagos, dos trovões, dos ventos. É uma polifonia, uma espécie de oratório, de missa circular, onde não há também uma luta por território entre essas sonoridades. Tudo é um corpo só, tudo é um corpo, o filme é um corpo, um corpo que não se desmembra assim tão logicamente, tão racionalmente. "Ah, vou tirar o som": às vezes, o som é uma imagem, às vezes, a imagem é um som. Às vezes, uma imagem grita, mas não tem som. Então, existe todo um deslocamento, uma espécie de deslizamento da linguagem, uma espécie de movimento cíclico, de uma espiral cíclica e até mesmo suicida. Todo esse movimento que também é cíclico dentro do próprio romance se verifica na própria montagem do filme, que é todo circular, feito de repetições. A personagem atende o telefone uma, duas, três vezes e você já não sabe qual é a vez verdadeira que ela atendeu. Ela entra no quarto da Janair uma, duas, três vezes, mas qual foi a verdadeira? Há também nesse gesto uma espécie de dúvida sobre a narrativa clássica, sobre o contar-se, né? Que também é um dos motes do próprio romance, a dúvida de contar-se, a dúvida da palavra, a desconfiança em relação ao próprio relato. É um contraponto, inclusive, em relação ao Lavoura Arcaica. Enquanto para o Raduan a palavra é um elemento sagrado e intocável, para Clarice é um elemento profano, cotidiano. E a tragédia de G.H. pode ser resumida talvez como alguém que perdeu a mediação comum, palavra nenhuma vai dar conta do que ela está sentindo.
Você falou de missa: pode falar sobre as conotações religiosas do filme, que tem um caráter de via-crúcis?
A via-crúcis somos nós mesmos, né? É um livro quase herético, eu diria, porque a Clarice desconstrói toda a ideia de uma religiosidade onde há uma noção da esperança como adiamento, como forma de controle. Se você se comportar direitinho, você no final da vida vai ver Deus. Em vez disso, G.H. é um ser pelo ato imediato, pela imanência, pelo aqui e agora, pela revelação. Clarice faz uma crítica a essa religião que promete, promete, promete e não entrega, não entrega a experiência de estar vivo. Mas é uma crítica à religião, e não ao sagrado, porque em si é um texto sagrado. É um texto com uma potência espiritual muito grande.
No livro, Janair, a empregada doméstica, é uma presença marcante justamente pela ausência física. No filme, ganha um corpo, na pele de Samira Nancassa (atriz negra nascida em Guiné Bissau), se torna uma figura incontornável. Essa decisão, ao mesmo tempo em que empresta atualidade ao filme, relembra que Clarice Lispector, embora praticasse uma literatura introspectiva, não era alienada aos problemas sociais do Brasil.
O livro tem várias camadas, mas a camada social é a primeira que se impõe, a primeira com que G.H. se defronta. Com sua genialidade, Clarice estava colocando ali a ideia de que a luta de classes não é uma questão somente do Marx. A História precisará sempre ser reescrita. Esse foi o meu gesto, estou ali reescrevendo a História com as coordenadas de hoje em relação àquele texto de 1964, escrito em plena ditadura militar. De lá para cá, apesar de alguns avanços na área social, a gente ainda está mjuito aquém de um mundo mais belo e justo. O racismo e as injustiças sociais ainda estão aí. Então, a Janair entra como um elemento detonador de toda a desconstrução de GH., dessa moralidade, desses preconceitos. A inscrição que ela deixa à carvão na parede do quarto, esse elemento alquímico, ancestral, é como um monólogo de Janair, radicalmente oposto ao monólogo ético e estético de G.H. É uma apresentação de uma nova epistemologia possível, uma nova cosmologia. E que faz com que G.H., dentro daquele quarto, seja a refém dela mesma, obrigada a confrontar-se, encontrar-se, avistar-se, descamar-se. Janair é fundamental, mas, infelizmente, ela continua sendo apagada. Se você consultar não só o resumo da Wikipédia, mas também alguns estudos acadêmicos, a primeira coisa que fazem é retirar a ação de Janair. Enquanto Clarice escreve "no dia anterior, Janair se despedira", dizem "no dia anterior, G.H. despediu Janair". Essas leituras do romance ainda são leituras colonialistas, ainda são leituras que invisibilizam. E neste momento em que a gente está se falando, no Brasil todo, Norte, Sul, Leste, Oeste, se erguem prédios e prédios, condomínios imensos, redesenhando a senzala moderna, com a entrada de serviço, por onde a doméstica deve entrar, com lugares onde ela é interditada. Nós somos ainda um país extremamente racista.