Já disponível no Amazon Prime Video, Sempre em Frente (C'mon C'mon, 2021) foi o primeiro trabalho de Joaquin Phoenix depois de Coringa (2019). O filme de origem do arqui-inimigo do Batman ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, tornou-se um tremendo sucesso de público (US$ 1,07 bilhão, a terceira maior bilheteria de um título com personagens da DC Comics) e valeu ao ator de 47 anos nascido em Porto Rico uma coleção de prêmios: o Oscar, o Bafta, o Globo de Ouro, o troféu do Sindicato dos Atores dos EUA e o Critics' Choice.
Mas Coringa também custou um bocado a Phoenix. Para interpretar Arthur Fleck, ele perdeu 23 quilos em um intervalo de quatro meses, alimentando-se, entre outras coisas, de maçã, alface e vagem de feijão verde ao vapor.
— Comer pouco me afetou psicologicamente — confessou o ator em entrevista a Sara Navas, no El País, acrescentando que, no estúdio de filmagem, precisou lutar contra sua paixão por uma iguaria surgida na Alemanha: — Todd Phillips (o diretor) trazia pretzels o tempo todo.
A transformação física que deu fluidez e vulnerabilidade ao personagem foi acompanhada por um estudo de diferentes transtornos de personalidade. Interpretar o Coringa "às vezes é inquietante e incômodo", admitiu Phoenix, que, em cena, viveu um sujeito marginalizado pela sociedade, abandonado pelo Estado e dissociado da realidade. Fora de cena, o astro teve de lidar as polêmicas despertadas pelo filme, como quando o jornalista Robbie Collin, do Telegraph, questionou sobre o possível encorajamento que pessoas extremistas poderiam encontrar no protagonista, sobretudo em um momento no qual os Estados Unidos passavam por uma grave crise de violência por armas de fogo. Indignado, ele largou a entrevista, voltando apenas uma hora depois, após ser convencido pela equipe da produtora Warner. E ainda houve a saia justa da participação no talk show Jimmy Kimmel Live, que exibiu uma cena de bastidores em que o ator dá bronca no diretor de fotografia Lawrence Sher.
Por todo esse contexto, Sempre em Frente parece o filme que Joaquin Phoenix fez para exorcizar Coringa. Seu personagem, Johnny, inclusive se permite ter uma pança.
Concorrente nas categorias de melhor filme, direção e roteiro do Independent Spirit Awards — a premiação do cinema independente estadunidense —, mas ignorado no Oscar e no Globo de Ouro, a obra traz a assinatura de Mike Mills, cineasta que disputou a estatueta dourada de roteiro original por Mulheres do Século 20 (2016) e que também realizou Impulsividade (2005) e Toda Forma de Amor (2010).
Se Coringa é sobre desespero, Sempre em Frente — o título entrega — é sobre esperança. Se o primeiro nos perturba, o segundo aquece o coração. Se Arthur Fleck é vítima da falta de empatia, Johnny vive de ouvir os outros. Ele é um jornalista de rádio que está dando início a um novo projeto: entrevistar crianças e adolescentes de várias partes dos Estados Unidos para saber o que elas esperam do futuro (e também como se sentem no presente). Como estará a natureza? As famílias serão iguais? No que sua cidade estará diferente? Do que você vai lembrar e do que vai se esquecer? O que te assusta? O que te irrita? Você se sente sozinho? O que te faz feliz?
Os depoimentos são reais e incluem pérolas como esta colhida em Detroit:
— Acho que os adultos sempre se acham os maiorais e sempre querem mandar em tudo. E alguns acham que estão sempre certos.
Também são autênticos os livros que, na leitura de Johnny, pontuam a narrativa, fazendo comentários sobre os dramas dos personagens, como Mothers: An Essay on Love and Cruelty, de Jacqueline Rose, e The Bipolar Bear Family, de Angela Ann Holloway. A bela fotografia em preto e branco do irlandês Robbie Ryan, indicado ao Oscar por A Favorita (2018) e responsável por História de um Casamento (2019), imprime um tom melancólico às praias e às palmeiras de Los Angeles e ao desfile carnavalesco de New Orleans, por exemplos, mas, por evitar distrações cenográficas, ajuda o espectador a se concentrar nas pessoas — reforçando o tema do filme.
A vida profissional de Johnny é afetada por um problema familiar. Sua irmã, Viv (Gaby Hoffman (da série Transparent), precisa que ele cuide do filho dela, Jesse (o carismático britânico Woody Norman, que disputou o Bafta de ator coadjuvante), nove anos, enquanto viaja para resolver questões ligadas ao ex-marido e pai do garoto, Paul (Scoot McNairy, do seriado Halt and Catch Fire).
As reflexões de Viv sobre maternidade levam a uma aproximação com outro destaque da temporada, A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal, e a relação entre Johnny e Jesse terá contratempos esperados nesse tipo de história. Mas as afetuosas atuações de Phoenix, Norman e Hoffmann garantem cenas de emoção que nunca transbordam para o dramalhão, e o temperamento singular e oscilante do menino provoca momentos ora desconcertantes, ora engraçados. Como quando o tio, intrigado com uma brincadeira do sobrinho — que finge ser um órfão —, pergunta por que tudo tem de ser tão triste, estranho e excêntrico, por que ele não pode "fazer algo normal". Parece até uma ironia com Coringa.