Uma pena que Os Rejeitados tenha saído de cartaz, se não, todos os 10 indicados ao Oscar de melhor filme estariam disponíveis com a estreia de Ficção Americana (American Fiction, 2023) no Amazon Prime Video. A propósito, vale apontar: foi um lançamento sem pompa nem circunstância. A plataforma de streaming não divulgou junto à imprensa e não destacou em seu menu — o carrossel de abertura do aplicativo, pelo menos no meu celular, destaca 10 outros títulos: O Jogo da Espionagem, Beekeper: Rede de Vingança, Patos!, Aquaman 2: O Reino Perdido, Igor Guimarães: Benigno in Paradise, A Maior História de Amor Nunca Contada, Natureza Humana, Casamento Grego 3, Ambulância: Um Dia de Crime e Não se Preocupe, Querida. Nenhum deles disputa a premiação que vai ser realizada daqui a poucos dias, em 10 de março. Para encontrar Ficção Americana, não bastou rolar a tela para baixo: foi preciso rolar para o lado também.
Gênero geralmente menosprezado pela Academia de Hollywood, a comédia (ainda que misturada ao drama) conseguiu emplacar quatro títulos nessa lista. Além dos dois citados, concorrem Barbie e Pobres Criaturas. A relação de competidores se completa com Anatomia de uma Queda, Assassinos da Lua das Flores, Maestro, Oppenheimer (o grande favorito), Vidas Passadas e Zona de Interesse.
Ficção Americana disputa outras quatro categorias: melhor ator, com Jeffrey Wright (visto nos recentes A Crônica Francesa e Asteroid City); ator coadjuvante, com Sterling K. Brown (vencedor do prêmio Emmy pela série This Is Us); roteiro adaptado, escrito por Cord Jefferson — ganhador do Bafta, da Academia Britânica, e do Critics Choice — a partir do romance Erasure (2001), de Percival Everett; e música original, com a trilha jazzística composta por Laura Karpman.
Primeiro longa-metragem dirigido por Jefferson, que traz no currículo o trabalho como roteirista nas séries Master of None, The Good Place e Watchmen, Ficção Americana lança um outro olhar sobre o racismo nos Estados Unidos. Foca nas ideias estereotipadas e nas práticas segregacionistas às quais personagens e autores negros estão sujeitos na literatura, no cinema, nas séries. Isso é sinalizado já na escalação de Jeffrey Wright, um eterno coadjuvante, ao papel de protagonista.
Seu personagem e sua família também fogem à regra. Ele, Thelonius Ellison, o Monk (o apelido faz referência ao homônimo famoso, o pianista e compositor Thelonius Monk, nascido em 1917 e morto em 1982), é um escritor; seus irmãos, Lisa (Tracee Ellis Ross) e Clifford (Sterling K. Brown), são médicos.
Os romances de Monk até que recebem elogios acadêmicos, mas vendem mal, muito mal — para piorar, nas livrarias não estão exibidos nas vistosas prateleiras de ficção, mas em uma mais oculta, sobre "estudos afroamericanos". Afinal, o autor é negro. Mas seu novo manuscrito foi recusado pelas editoras, sob a justificativa de que "não é negro o suficiente".
Ao participar de um seminário literário, depara com uma sala quase vazia: estão todos assistindo ao painel de outra escritora negra, Sintara Golden (encarnada pela atriz, comediante e produtora Issa Rae), que se tornou best-seller graças a uma obra que atende aos clichês entronizados na sociedade majoritariamente branca dos Estados Unidos — a começar pelo título: We's Lives in Da Ghetto.
Fulo da vida, às voltas também com um grave problema familiar, Monk decide extravasar escrevendo uma sátira na qual zomba dos lugares-comuns esperados de autores de sua etnia, uma trama cheia de gírias e com pais malandros, filhos drogados e gangues violentas. A partir daí, Ficção Americana discute tanto a representação dos negros no mundo da cultura e do entretenimento quanto o racismo e a hipocrisia dos brancos.
Paralelamente, como a provar que uma narrativa de realizadores e personagens negros pode prescindir dos estereótipos, Cord Jefferson desenvolve os conflitos familiares dos Ellison. Já li aguns críticos louvando essa parte como a melhor do filme, mas, para mim, Ficção Americana cai significativamente, torna-se menos interessante, quando se afasta do debate central. Que, em seus momentos mais inspirados, remete a um tesouro de Spike Lee escondido no limbo digital: A Hora do Show (Bamboozled, 2000). É uma sátira feroz com uma amarga reflexão: inclusão requer assimilação?
Nesse filme, o cineasta de Faça a Coisa Certa (1989), Malcolm X (1992) e Inflitrado na Klan (2018) escancarou o racismo de Hollywood. O protagonista, Pierre Delacroix (Damon Wayans), educado em Harvard, é o único roteirista negro de uma grande emissora de TV. Seu chefe (Michael Rapaport), um branco que se diz mais negro do que os negros e que diz que "ninguém quer saber desses filmes politizados do Spike Lee", lhe dá um ultimato: ou Pierre cria um seriado black de sucesso, ou vai para a rua.
O escritor tem uma ideia mirabolante: recuperar os shows de menestréis do século 19, em que artistas brancos pintavam a cara de preto e reforçavam o estereótipo do escravo burro, preguiçoso e bom cantor. Ao lado de sua assistente (Jada Pinkett-Smith), recruta um sapateador sem-teto (o dançarino Savion Glover) e seu parceiro cômico (Tommy Davidson). Ambos são negros — que vão se pintar de preto. O primeiro é batizado de Mantan, em alusão ao ator Mantan Moreland (1902-1973), famoso por encarnar criados e mordomos em comédias dos anos 1930 e 1940. O segundo ganha a alcunha de Sleep'n'Eat (Come-e-Dorme).
O diretor trabalha em cima do estudo de Donald Boogle sobre cinco estereótipos negros, Toms, Coons, Mulattoes, Mammies and Bucks: An Interpretative History of Blacks in American Films. Os Toms equivalem à figura do Pai Tomás, negro servil, aquele que sempre diz "sim, senhor". Coons são os palhaços de olhos esbugalhados. Mulattoes são os mulatos simpáticos mas fadados a um triste fim por tentar ocultar suas origens. Mammies são as negras gordas, imortalizadas pela criada vivida pela oscarizada Hattie McDaniel em ...E o Vento Levou (1939). E Bucks são os negros brutais e hipersexualizados de O Nascimento de uma Nação (1915), a apologia de D.W. Griffith à organização supremacista branca Ku Klux Klan.
No espantoso clipe final de A Hora do Show, uma colagem de imagens de filmes, desenhos animados, programas de TV e comerciais, aparecem todos esses cinco estereótipos. Uma porção de personagens pronuncia, em sequência, a servilidade imposta: "Yes, mam. Yes, mam. Yes, mam".
Os clichês foram reinventados na Blaxploitation, movimento que nasceu da luta pelos direitos civis com a fome por novos mercados. Os filmes eram dirigidos e estrelados por negros, com tramas calcadas em violência e sexo, nessa ordem — davam vez ao gueto, mas reforçavam estereótipos ("brutais, vulgares, hipersexualizados"). Sweet Sweetback's Baadasssss Song (1971) abriu alas ao gênero, que teve como estrelas Pam Grier (a sexy vingadora de Coffy e Foxy Brown) e Richard Roundtree (o policial Shaft rendeu três filmes e um seriado). O sucesso gerou subgêneros (vide Blácula) e atraiu grandes estúdios — a Paramount lançou em 1975 o controverso Mandingo, inspiração para o controverso Django Livre (2012) de Quentin Tarantino, que celebrara a Blaxploitation em Jackie Brown (1997).
A partir da década de 1990, comediantes negros dos EUA resolveram mercantilizar o preconceito racial. Passaram a se travestir de obesas para destilar piadas fisiológicas. Eddie Murphy deu a largada, com O Professor Aloprado 1 e 2, ambos com bilheteria superior a US$ 120 milhões nos EUA. Martin Lawrence tentou copiar com a franquia Vovó... Zona. O diretor, roteirista e ator Tyler Perry (que é citado em Ficção Americana) virou fenômeno com a série Madea, que nasceu no DVD e depois pulou para a tela grande. Já os irmãos Marlon e Shawn Wayans reverteram o blackface: em As Branquelas, interpretam dois policiais negros que se disfarçam de loiras — fúteis e burras, como manda o estereótipo.