Felliniano. Hitchcockiano. Bergmaniano. Não são muitos os cineastas que imprimem um estilo tão marcante em suas obras, com uma temática e/ou uma linguagem tão características, a ponto de se transformarem em adjetivos. Quentin Tarantino, que comemora 60 anos nesta segunda-feira (27), conseguiu.
Tarantinescos são os filmes que conjugam personagens amorais, mas com um código de ética muito particular, geralmente interpretados por um elenco que até então amargava o ostracismo, violência estilizada, referências mil à cultura pop (de quadrinhos de super-herói às produções orientais de kung fu, do faroeste italiano aos seriados de TV), diálogos embebidos por frases de efeito, palavrões e banalidades, um senso de humor mórbido e uma trilha sonora descolada e classuda, que costuma dar margem a cenas de dança. Ah, sim, e ele tem um fetiche que ninguém se atreve a copiar: o de mostrar, detidamente, pés femininos.
Ultimamente, o diretor e roteirista estadunidense nascido em Knoxville, no Tennessee, aprimorou uma característica narrativa de seu início de carreira (a propósito, nos primeiros anos ele teve scripts dirigidos por outros cineastas, como Assassinos por Natureza, de Oliver Stone, e Um Drink no Inferno, de Robert Rodríguez). Se Cães de Aluguel (1992) e Pulp Fiction (1994) contavam a história por diferentes pontos de vista, em Bastardos Inglórios (2009), Django Livre (2012) e Era uma Vez em Hollywood (2019) Tarantino reescreve a História.
Também ultimamente, Tarantino vem ensaiando sua aposentadoria como cineasta, depois de conquistar duas vezes o Oscar de roteiro original — por Pulp Fiction (com Roger Avary) e Django Livre — e concorrer a outras seis estatuetas douradas: melhor direção por Pulp Fiction, direção e roteiro original por Bastardos Inglórios, melhor filme (como um dos produtores), direção e roteiro original por Era uma Vez em Hollywood. Comercialmente, seu maior sucesso foi Django Livre, com US$ 425,3 milhões, seguido de Era uma Vez em Hollywood (US$ 371,9 milhões) e de Bastardos Inglórios (US$ 321,4 milhões).
Por Pulp Fiction, também ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Por falar em França, em quatro oportunidades figurou na lista dos 10 melhores do ano elaborada pela prestigiada revista parisiense Cahiers du Cinéma: Jackie Brown (1997) ficou na décima posição, Kill Bill: Vol. 2 (2004), em nono lugar, À Prova de Morte (2007), em segundo, e Bastardos Inglórios, em terceiro.
Em entrevista para a revista Playboy, em 2012, Tarantino comentou que "artistas criativos como ele não melhoram depois de certa idade" e que considera que "seus piores filmes sempre acontecem próximo da morte, quando perdem noção da realidade". Ele também já disse várias vezes que pararia quando fizesse seu 10º longa-metragem. Pelas suas contas (despreza a comédia independente My Best Friend's Birthday, de 1987, e considera os dois volumes de Kill Bill, de 2003 e 2004, como um filme só), o próximo será o derradeiro.
O roteiro de The Movie Critic já está escrito e deve ser filmado no fim do ano. A produção será ambientada em Los Angeles, no final dos anos 1970, e terá uma mulher como protagonista. Especula-se que o novo projeto seja sobre Pauline Kael (1919-2001), crítica de cinema influente nos Estados Unidos e que é muito elogiada pelo cineasta. Ela chegou a trabalhar como consultora na Paramount Pictures justamente na época em que a trama deve se passar. Cate Blanchett é a favorita para assumir o papel.
Enquanto The Movie Critic não vem, que tal ver ou rever todos os seus longas-metragens?
Todos os filmes de Tarantino, do pior ao melhor
9) Django Livre (2012)
Anos antes da Guerra Civil americana, no sul dos Estados Unidos, um escravo (Jamie Foxx) é comprado por um caçador de recompensas que vagueia pelo Velho Oeste disfarçado de dentista (Christoph Waltz), e os dois fazem uma aliança inesperada para caçar criminosos e para tentar libertar uma mulher (Kerry Washington) de um sádico fazendeiro sulista (Leonardo DiCaprio). Apesar de ganhar dois Oscars (roteiro original e ator coadjuvante, para Waltz) e disputar outros três, incluindo melhor filme, Django Livre é um título que, com o passar dos anos, foi caindo em apreço. Para alguns, além de parecer menos uma crítica ácida do que uma exploração zombeteira da violência da escravidão e do racismo, ainda incorre na ideia do chamado "negro excepcional", em contraposição à suposta "servilidade natural" da etnia. O cineasta Spike Lee, oscarizado pelo roteiro adaptado de Infiltrado na Klan (2018), reclamou mesmo sem ter visto: "Não vou assistir ao filme. Tudo o que posso dizer é que ele é desrespeitoso aos meus ancestrais. A escravidão nos Estados Unidos não foi um western spaghetti de Sérgio Leone, mas um holocausto". (HBO Max e NOW)
8) Era uma Vez em Hollywood (2019)
Ambientada em 1969, esta fábula cruza os caminhos de um ator decadente (Leonardo DiCaprio) e um dublê (Brad Pitt, Oscar de coadjuvante), ambos personagens fictícios, com o da atriz Sharon Tate (Margot Robbie), assassinada pela seita de Charles Manson. O ritmo de suas duas horas e 45 minutos é bastante lento. Há longas sequências em que nada acontece, a câmera demora-se em passeios de carro por uma Hollywood plena de cartazes publicitários, anúncios radiofônicos, vinhetas de TV e marquises de cinema que traduzem a saudade de Tarantino, um ex-empregado de videolocadoras que conseguiu realizar seu sonho de estrelato. São os momentos em que o cineasta exercita sua vaidade, exibindo seus maneirismos visuais, seu gosto musical bastante singular, que se alterna entre o resgate de uma pérola e a promoção de uma obscuridade, e suas citações a outras obras cinematográficas ou televisivas — algumas dele mesmo: o seriado de Velho Oeste que deu fama a Rick Dalton, Bounty Law, é sobre um caçador de recompensas, como aquele encarnado por Christoph Waltz em Django Livre; seu filme mais elogiado, The 14 Fists of McCluskey, retrata uma missão para matar nazistas, como em Bastardos Inglórios. É Tarantino agradando sua enorme legião de fãs e seu enorme ego. (Netflix e NOW)
7) Jackie Brown (1997)
Com um roteiro baseado em novela policial de Elmore Leonard, o diretor bebe na fonte do cinema blaxploitation, produzido e estrelado por atores negros dos EUA na década de 1970, para acompanhar a enrascada em que se mete uma aeromoça (papel de Pam Grier, veterana musa desse tipo de filme e estrela de Foxy Brown). Flagrada trazendo dinheiro ilegalmente, ela faz acordo com a polícia e trai um traficante. Estrelado também Robert De Niro, Samuel L. Jackson, Bridget Fonda, Michael Keaton e Robert Forster (indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante), é um Tarantino que faz sentir suas duas horas e 35 minutos, mas que também apresenta sensibilidade para o romance. Ao contrário do que ocorreu com Django Livre, Jackie Brown ganhou mais admiradores com o passar do tempo: muitos admitem que, à época, esperavam um novo Pulp Fiction. (Indisponível no streaming)
6) À Prova de Morte (2007)
Tributo aos filmes exploitation dos anos 1970, produções tipo B que faziam os barbados suspirar na sala escura diante de carrões envenenados, mulheres voluptuosas e muito sangue jorrando. Tem uma estrutura dois-em-um, com duas metades que se complementam: a noite do caçador e o dia da caça. Na primeira parte, o dublê serial killer Mike (Kurt Russell) observa e persegue um time de belas garotas que joga conversa fora e enche a cara em bares de beira de estrada. Na segunda, ele tenta repetir a dose, mas encontra pela frente gatas duras na queda (Zoë Bell, Rosario Dawson, Mary Elizabeth Winstead e Tracie Thoms). As perseguições de carros são de tirar o fôlego neste que é um raro Tarantino com menos de duas horas de duração. (Amazon Prime Video e canal Telecine do Globoplay)
5) Os Oito Odiados (2015)
Durante uma nevasca, na época logo após a Guerra Civil americana, dois caçadores de recompensa (Kurt Russell e Samuel L. Jackson), uma perigosa prisioneira (Jennifer Jason Leigh, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante) e um xerife (Walton Goggins) encontram quatro desconhecidos em um bar. À medida em que a tempestade piora, seus segredos começam a ser revelados um a um. Não há mocinhos neste bangue-bangue dividido em seis atos, cuja tensão dramática vai crescendo até uma explosão de violência inaudita, tudo embalado pela trilha sonora do italiano Ennio Morricone, premiado com o Oscar. (Amazon Prime Video e HBO Max)
4) Bastardos Inglórios (2009)
Para muitos, é a obra-prima de Tarantino (aliás, o filme termina com a seguinte narração em off: "Acho que esta pode ser minha obra-prima"). Brad Pitt, impagável, vive Aldo Raine, um matuto tenente dos EUA que lidera um grupo de militares judeus na caça aos nazistas na França ocupada. A ordem é fazer uso de violência extrema, para tocar o terror nos soldados de Hitler. Christoph Waltz, que ganhou o Oscar de ator coadjuvante e recebeu troféu no Festival de Cannes, interpreta Hans Landa, um coronel poliglota da SS. E Mélanie Laurent é Shosanna, uma sobrevivente que assume outra identidade e passa a gerir um cinema de Paris que é frequentado pelos alemães. Parodiando filmes de guerra como Os Doze Condenados (1967), Bastardos Inglórios homenageia o dom de iludir do cinema ao subverter a história da Segunda Guerra Mundial. (Star+, NOW e canal Telecine do Globoplay)
3) Cães de Aluguel (1992)
Fugindo da polícia após um assalto a uma joalheria, uma gangue se reúne em um galpão, onde se levanta a suspeita de que há um traidor entre eles. Harvey Keitel é o Mr. White, Tim Roth, o Mr. Orange, Michael Madsen, o Mr. Blonde, Steve Buscemi, o Mr. Pink, Edward Bunker, o Mr. Blue, e o próprio Quentin Tarantino encarna o Mr. Brown. Todas as marcas tarantinescas já estão aqui: o manuseio inteligente dos códigos do cinema policial, a hiperviolência gráfica, os diálogos verborrágicos, a singular trilha sonora de raridades e esquisitices — vide o emprego sinistro de Stuck in the Middle With You: Michael Madsen dança e cantarola o hit do Stealers Wheel enquanto tortura e corta uma orelha de um policial. (Lionsgate+, Looke, MUBI e canal Telecine do Globoplay)
2) Kill Bill Vols. 1 e 2 (2003 e 2004)
Tarantino oferece uma mistura de Bruce Lee, séries policiais dos anos 1970, faroeste italiano, mangás, quadrinhos de super-herói... Com a peculiar estrutura fragmentada e os famosos diálogos disparatados, o filme conta a história de uma assassina profissional: a Mamba Negra, agora conhecida como A Noiva e vivida por Uma Thurman. No dia de seu casamento, em uma igrejinha do Texas, ela é vítima de um massacre ordenado por seu ex-chefe — o Bill do título, interpretado por David Carradine, astro da série de TV Kung Fu na década de 1970. Sobrevive e, após quatro anos em coma, busca sua vingança no fio afiado de uma espada samurai. Toda a violência (o balé da pancadaria, o sangue falso que jorra feito chafariz dos corpos mutilados pela Noiva, a gritaria e as caretas dos capangas) distancia Kill Bill do mundo real e o aproxima de um desenho animado — não à toa, o cineasta recorre ao anime para contar a trajetória de O-Ren Ishii (personagem de Lucy Liu). No volume 2, a ação se torna menos frenética, e as cenas, mais verborrágicas. Um dos momentos antológicos é aquele em que Bill explica à Noiva sua teoria sobre o Superman. (Indisponíveis no streaming)
1) Pulp Fiction (1994)
Assim resumiu Roger Lerina certa vez em ZH: "Tarantino potencializa as características de sua estreia ao costurar tramas e personagens em um ziguezague narrativo desconcertante, condimentando com humor e ação esse xis-tudo de referências pop". Então com 31 anos, o diretor e roteirista deu à luz um dos filmes mais discutidos, analisados, influentes e imitados das últimas três décadas.
A engenhosa narrativa circular de Pulp Fiction faz três tramas principais costurarem sete segmentos cronologicamente embaralhados. Os protagonistas são dois matadores (John Travolta e Samuel L. Jackson) atrás de um boxeador (Bruce Willis) que passou a perna no chefe deles (Ving Rhames, que tem uma das frases mais antológicas da filmografia tarantinesca, aquela do "Eu vou ser medieval..."). Há ainda a namorada (Uma Thurman) do gângster, a quem um dos pistoleiros precisa entreter em uma noitada de drogas e rock'n'roll.
Com orçamento de US$ 8 milhões, Pulp Fiction faturou US$ 213 milhões apenas nos cinemas. Além da Palma de Ouro no Festival de Cannes, venceu o Oscar de roteiro original e disputou as estatuetas douradas de melhor filme, diretor, ator (John Travolta), ator coadjuvante (Samuel L. Jackson, que ficou celebrizado pelo monólogo em que recria uma passagem da Bíblia, Ezequiel 25:17), atriz coadjuvante (Uma Thurman) e montagem. A trilha sonora foi onipresente nas festas bacanas dos anos 1990. Misirlou, surf music instrumental que abre o filme, gravada por Dick Dale em 1962, é uma versão de uma canção folclórica com provável origem no Império Otomano. Tarantino também "descobriu" e usou no filme pérolas como o funk Jungle Boogie, gravado em 1973 pelo Kool & The Gang, You Never Can Tell, hit de 1964 de Chuk Berry dançado antologicamente pelos personagens de Thurmann e Travolta, Son of a Preacher Man, gravada em 1968 por Dusty Springfield, a versão do Urge Overkill para Girl, You'll Be a Woman Soon, canção de Neil Diamond de 1967, e Let's Stay Together, na voz de Al Green, em registro de 1971.