Falar com Jorge Furtado é como assistir a seus filmes: a qualquer instante, podem surgir citações (eruditas ou populares) e a vontade de clicar numa palavra para se aprofundar em outro assunto, refletindo tanto uma característica pessoal que o cineasta porto-alegrense chama de "obsessões temporárias" quanto uma marca de suas obras. Na entrevista que concedeu no 26º Festival Internacional de Cine de Punta del Este, onde recebeu homenagem pelos 40 anos de carreira, ele foi do diplomata pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, à banda carioca Kid Abelha, um dos expoentes do pop da década de 1980. (Duas noites antes, nos bastidores, a conversa fora do polêmico Je vous Salue, Marie, de Godard, ao documentário sobre a gravação de We Are the World; apenas por absoluta coincidência, tanto o longa quanto a canção são de 1985.)
A programação do festival, que começou na sexta-feira (23) e termina na quinta (29), contou com uma mostra retrospectiva de Furtado, 64 anos, que estreou com o curta-metragem Temporal (1984), codirigido por José Pedro Goulart, e hoje soma mais de 20 longas no currículo, como diretor ou roteirista, em solo ou em dupla, entre ficções e documentários — ou a mistura dos dois —, além de uma vasta coleção de trabalhos para a TV, como as premiadas séries Doce de Mãe e Sob Pressão. Foram exibidos em Punta cinco longas — Houve uma Vez Dois Verões (2002), O Homem que Copiava (2003), Meu Tio Matou um Cara (2004), Saneamento Básico, o Filme (2007) e o documentário O Mercado de Notícias (2014) — e o curta que inscreveu o nome do gaúcho na história do cinema mundial: Ilha das Flores (1989). Premiado no Festival de Berlim e eleito pela crítica europeia, durante o Festival de Clermont-Ferrand (na França) de 1995, como um dos cem mais importantes do século 20, o filme usa a trajetória de um simples tomate para explicar a lógica do sistema capitalista e dimensionar o tamanho da desigualdade social no Brasil. Nesse título, Furtado depurou o estilo de hipertexto que se tornaria uma assinatura. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa:
Como você esses 40 anos de carreira?
Acompanhei uma transformação radical do cinema. Quando comecei, o cinema era em negativo, tu filmava num dia e só na semana seguinte podia ver como ficou o enquadramento, se a cena tinha foco. Era muito caro de produzir e só existia nas telas de cinema. Não tinha nem VHS ainda. Acho que, à medida que fui fazendo os filmes, fui acompanhando essas transformações e tentando falar, eu identifico isso nos curtas principalmente, sobre o que estava acontecendo no Brasil e comigo. Temporal é um filme adolescente. Dorival Encarou a Guarda (1986, com José Pedro Goulart) é um filme pelas Diretas Já. Barbosa (1988, com Ana Luiza Azevedo) é um filme da era Sarney, deprimido, e o Ilha das Flores é um filme Collor versus Lula, naquele momento da volta de democracia. Fui tentando refletir e sentir o meu país. É o que fiz nos meus 40 anos de carreira e o que continuo fazendo. (Nota do colunista: em 2014, no documentário O Mercado de Notícias, por exemplo, Furtado discutiu o papel da imprensa, sobretudo no jogo político; na comédia Vai Dar Nada, de 2022, assinada com Ana Luiza Azevedo, retratou as agruras de um jovem negro da periferia às voltas com a lei da polícia, a leia da milícia e a lei do tráfico.)
O que você considera como marcas suas? Qual será o legado de Jorge Furtado para a história do cinema?
O Umberto Eco diz que a gente não deve interpretar a própria obra, mas eu vejo como marca uma preocupação de falar com humor, mesmo dos assuntos mais sérios. E tento levar em consideração o público, sempre penso em fazer um filme que dialogue com o público. Não faço filmes para festivais. O Gilberto Gil tem uma frase de que eu gosto muito: o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe. A ideia é fazer um cinema popular de qualidade. Eu e o Guel Arraes (cineasta pernambucano, diretor que lança no final de maio Grande Sertão, adaptação do clássico romance de Guimarães Rosa escrita em parceria com Furtado) sempre falamos isso: existe a música popular brasileira, também deve haver o cinema popular brasileiro.
Antes de fazer cinema, você cursou Medicina, Psicologia, Jornalismo e Artes Plásticas. De certo modo, isso se reflete nos seus filmes, que cruzam referências e gêneros e têm a cultura do hipertexto, certo?
Acho que me interessei pelo cinema também por eu ser um generalista. Jornalismo é assim, a gente se interessa muito por alguma coisa por pouco tempo. Citar Kid Abelha é estranho, mas tem uma música que diz: tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim. Nada foi fora do que eu estudei. E continuo estudando.
Qual é não necessariamente o seu melhor filme, mas aquele que deu mais alegria?
O Ilha das Flores é meu filme mais importante. Teve uma grande repercussão e acho que continua sendo visto. E infelizmente continua muito atual. O Brasil hoje tem muita gente passando fome, mas continua exportando proteína, para alimentar os porcos da China. Dá para quase fazer um Ilha das Flores 2. Mas, tentando um distanciamento, acho que o filme que tem menos coisa para mexer é o Saneamento Básico. O cinema é a arte mais coletiva que existe. ("Os filmes do Jorge Furtado são também da Nora Goulart, da Ana Luiza Azevedo, do Giba Assis Brasil", ele diria na noite de segunda, 26, citando seus sócios na Casa de Cinema de Porto Alegre, ao receber um troféu comemorativo). Depende da equipe, e no Saneamento Básico deu tudo certo. O roteiro funcionou, o elenco era incrível, deu certo a filmagem... É o meu filme que eu mais revejo.
E tem algum arrependimento, uma tristeza ou decepção?
Decepção propriamente não. Não fiz nenhum filme que eu não queria fazer. Mas tem um curta que eu fiz para os Estados Unidos chamado Rummikub (2007). Foi o meu único filme que tinha um produtor no set. O produtor americano veio acompanhar. E eu me atrapalhei, fiquei incomodado de ter aquele cara ali que parecia meio meu chefe, dizendo que essa cena ficou melhor... Meu único arrependimento foi ter aceitado aquele americano no meu set! (risos)
Qual é o filme que você ainda vai fazer?
Pois é... Tem um livro que escrevi, As Aventuras de Lucas Camacho Fernandez (2022), que escrevi pensando num filme. Não sei se vou fazer porque não sei se vou ter dinheiro. É muito caro, é uma história que se passa no século 17, com piratas e tal. E estou estudando agora, tenho umas obsessões temporárias, o Alcibíades (450 a.C.-404 a.C., general e político ateniense), personagem que, alguém já disse isso, não sei como o Shakespeare não escreveu uma peça sobre ele. O Alcibíades está no Vidas Paralelas, do Plutarco, e o Shakespeare se baseava muito em Plutarco, o Julio César do Shakespeare é praticamente o Julio César do Plutarco. É um personagem espetacular. Estou estudando mas não sei pra quê, porque eu nunca vou filmar uma história da Guerra do Peloponeso! (risos)
Shakespeare é a sua grande obsessão?
Ah, é, sem dúvida. Shakespeare é um vício absoluto. Eu entendo porque tem gente que só estuda Shakespeare. É um buraco negro. Se tu quiser, tu não sai mais de lá. Só lê Shakespeare, só fala disso. Conheço uma professora que é assim, sabe todas as peças de cor, e em inglês. Eu fico lendo e relendo e sempre descubro uma coisa nova. É um negócio absurdo. Das 10 maiores peças de teatro, pelo menos cinco são dele. Na minha opinião, sete são dele. Isso não existe em nenhuma outra área.
Tem a sua peça preferida?
Hamlet é imbatível. Hamlet é inacreditável. Como é que um cara no começo do século 17 conseguiu fazer uma peça que tem uma peça dentro da peça e tem toda aquela reflexão sobre a vida e sobre a morte. O Harold Bloom diz que só os Evangelhos e Shakespeare falam tão bem da morte, da vida após a morte, essa questão da morte que assombra o ser humano. E ainda assim Hamlet é engraçado.
Uma reportagem recente do Jornal do Comércio apontou que você já soma 15 projetos com protagonistas negros. Você comentou: "Tu tens que fazer filmes que falam sobre o racismo e filmes em que o personagem é simplesmente negro e que o assunto não é esse". Pode falar mais sobre o tema?
O Brasil é um país de maioria negra, e a gente não lembra disso. Somos majoritariamente negros, e essa maioria negra não está representada em lugar nenhum. Não está nos filmes, não está no poder, nos postos de chefia. Só no futebol e na música, que não por acaso são nossas melhores artes. A cultura negra é riquíssima e precisa estar representada. Então, desde o Dorival, que fala de racismo em 1986, eu fiz muitos projetos nos quais eu tenho essa preocupação de procurar atores negros e equipe também, de ter essa mistura. O Joaquim Nabuco diz: a escravidão permanecerá por muito tempo como a marca da identidade nacional. Nós somos o país dos escravos, o Brasil era conhecido assim e continua sendo, de uma certa maneira. Tem dados que são aterradores. Em 2022, por exemplo, nas três maiores cidades do Nordeste, Salvador, Recife e Fortaleza, a polícia matou 800 pessoas. Nenhum branco. Nenhum branco. Isso é um genocídio. Existe um genocídio em marcha no Brasil, o dos jovens negros, que é decorrente da política de guerra às drogas. A polícia entra matando. Se for negro, corre; se for branco, tá tranquilo. A gente tem de falar desse assunto. Mas dá para falar de várias maneiras. Às vezes, basta um filme como O Homem que Copiava ter um protagonista negro. O Lázaro Ramos também fez o Zico em Saneamento Básico. A questão do racismo não é o assunto, mas ele (o ator negro) está lá. Em outras vezes, o filme vai falar disso, como Meu Tio Matou um Cara ou a série Mister Brau (2015-2018). Esse assunto me motiva, tanto que estou fazendo agora, com uma diretora carioca, e que é negra, Yasmin Thainá, um filme sobre a história de uma psicanalista negra, a primeira psicanalista da América do Sul, Virgínia Leone Bicudo (1910-2003). É um nome de que não se ouve falar porque ela foi apagada da História (rodado em Porto Alegre, Virgínia e Adelaide é estrelado por Gabriela Correa e Sophie Charlotte e deve estrear no segundo semestre).
(*) O colunista viajou a convite do 26º Festival de Cine de Punta del Este