Manipulação da informação, papel do jornalista como intermediário entre o fato e o leitor, relação promíscua com as fontes e embate entre a notícia relevante e a futilidade mundana. Em 1625, a imprensa dava seus primeiros passos, e essas questões já inquietavam o dramaturgo inglês Ben Jonson, que as abordou de forma crítica na peça teatral cômica O Mercado de Notícias (The Staple of News no original).
O cineasta Jorge Furtado traz a discussão para 2014 no documentário O Mercado de Notícias, adicionando a ela o debate em torno das transformações impostas pelo processo de apuração, produção e consumo da notícia nas plataformas digitais. Furtado destaca o quanto a visionária observação lançada no começo do século 17 por Jonson ainda pauta a visão sobre a imprensa no século 21.
Ainda sem previsão de estreia nos cinemas, o longa-metragem foi filmado em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília entre dezembro de 2012 e junho de 2013. No circuito de festivais, a carreira tem início nesta quarta-feira, na programação do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, em São Paulo. A produção da Casa de Cinema de Porto Alegre também foi selecionada para o Cine PE - Festival de Recife, no final do mês.
O Mercado de Notícias surgiu no horizonte de Furtado pelo cruzamento de duas fontes de grande interesse do diretor: o teatro elisabetano e o jornalismo. Jonson (1572 - 1637) foi contemporâneo de Shakespeare e um dos homens mais iluminados de seu tempo. A peça foi encenada pela primeira vez em 1626, em Londres.
- É incrível que um texto escrito apenas três anos depois de o primeiro jornal inglês começar a circular (o semanário A Current of General News) traga as mesmas discussões que temos hoje - diz Furtado, que assina a primeira tradução da peça para o português com a professora Liziane Kugland.
A estrutura de O Mercado de Notícias combina a encenação da peça de Jonson no palco de Theatro São Pedro - no elenco, estão nomes como Evandro Soldatelli, Mirna Spritzer, Irene Brietzke, Janaína Kremer, Nelson Diniz, Zé Adão Barbosa, Marcos Contreras, Sérgio Lulkin, Elisa Volpatto e Eduardo Cardoso - e depoimentos de 13 renomados jornalistas brasileiros, como Janio de Freitas, Geneton Moraes Neto, Mino Carta, Raimundo Pereira, Luis Nassif e Bob Fernandes.
- Busquei jornalistas ligados à cobertura política e conhecidos nacionalmente - explica o diretor. - Antes das entrevistas, mandei a todos o texto da peça, como forma de costurar nas conversas a percepção do Ben Jonson sobre a imprensa no século 17 com a deles hoje - explica Furtado.
O documentário tem início com a reunião dos atores gaúchos na sede da Casa de Cinema, em março de 2013. Segundo Furtado, eles foram chamados sem saber o trabalho que teriam pela frente. Assim, é apresentado o trabalho em construção, com o diretor explicando ao elenco a proposta do projeto, a história de Jonson e o texto que será trabalhado dali em diante.
O tom ácido do dramaturgo inglês dialoga com o estilo de humor que o diretor brasileiro consagrou em filmes como O Homem que Copiava (2003) e Saneamento Básico (2007) - no segundo semestre, Furtado lança Beleza, drama de ficção rodado no interior do Estado - e, em especial, com suas produções para a televisão. Outra característica narrativa de Furtado, os hiperlinks carregados de informações enciclopédicas e curiosas, consagrada por ele a partir do curta Ilha das Flores (1989), aparece de forma criativa em O Mercado de Notícias. Ajuda a traçar a linha histórica da evolução da imprensa e a amarrar a competente encenação dramatúrgica e as entrevistas com os episódios emblemáticos da imprensa nacional pinçados por ele para ilustrar o processo, por vezes nebuloso, que move as engrenagens do mercado de notícias.
Um desse casos é a da Escola de Base, ocorrido em São Paulo, em 1994. Na ocasião, os donos e funcionários de uma escola infantil foram acusados de abuso sexual de crianças. A denúncia, que se mostraria falsa, ganhou manchetes sensacionalistas de jornais e revistas que, posteriormente, trataram em tímidas notas de rodapé da inocência dos acusados que tiveram suas vidas arruinadas.
Esse debate sobre a ética jornalística e sobre o poder que a imprensa tem - ou se atribui ter - de bancar polícia, juiz e carrasco entra na discussão com os entrevistados. Em síntese, o saldo da conversa sublinha firmamentos basilares do ofício que não deveriam ser ignorados tanto no velho papel quanto, sobretudo, na velocidade imposta pelo noticiário online: apurar com rigor; duvidar sempre; ter bem claro o que é jornalismo e o que é propaganda; caçar notícia na rua; cultivar fontes confiáveis e delas filtrar a informação dos interesses pessoais, políticos e econômicos; e se empenhar para que redação e departamento comercial permaneçam como áreas distintas.
E depois de radical transformação do jornalismo imposta pela internet, que faz de qualquer cidadão um potencial repórter, é unânime a percepção de ser ainda maior a responsabilidade do bom jornalista na missão diária de separar o joio do trigo
nesse universo de informações abundantes, instantâneas e pulverizadas.
O próprio Furtado lança na discussão episódios emblemáticos que ele mesmo decidiu apurar. Um deles é sobre o a pintura A Mulher em Branco, de Pablo Picasso, cuja reprodução colocada na parede de uma repartição do INSS, em Brasília, foi tratada como obra original pela Folha de S. Paulo em reportagem de 2004. O diretor mostra no filme a pintura verdadeira, pertencente ao acervo do Metropolitan, em Nova York, durante uma retrospectiva de Picasso que visitou no museu Guggenheim, quando esteve na cidade para a cerimônia do Emmy que premiou o trabalho de Fernanda Montenegro no especial Doce de Mãe, em novembro passado.
- Descobri que essa reprodução pertencia ao acervo do pintor Tomás Santa Rosa e foi dada com pagamento de uma dívida com o INSS. Mas quem avaliou e por quanto? - questiona ele, que, assim como alguns leitores, alertou o jornal do erro, não reparado e repetido em reportagem seguinte.
Outro episódio mostrado por Furtado é do bolinha de papel que atingiu o então candidato à presidência em 2010 José Serra. Na ocasião, o objeto chegou a ser descrito pela imprensa como uma pedra, o que teria justificado a ida do político ao hospital para realizar uma tomografia. Analisando imagens da cena captadas por diferentes equipe de TV, Furtado aplica na imagem um efeito de brilho e contraste e mostra que o possível suspeito de arremessar a bolinha poderia ser um segurança do próprio Serra:
- Eu não sou jornalista. Qualquer um poderia ter feito isso que fiz, pois essas imagens estão todas disponíveis na internet;
Mais informações sobre o filme e sobre o material pesquisado por Furtado estão sendo disponibilizadas no site do filme, que terá atualização semanal com novos conteúdos.