— Estou tocando uma música no piano. Se você souber, cante comigo — diz Adelheid Koch (Sophie Charlotte) para Virgínia Bicudo (Gabriela Correa).
A dupla, então, começa a cantar: "Não calculas como sofre / O meu pobre coração / Por faltar o seu carinho / Junto do meu coração / E assim é tudo, enfim / Meu doce chequerê / Mas eu não me conformo / Viver longe de você". A música é Chequerê, do compositor Sinhô, gravada em 1929.
A letra fala sobre despedida e sobre a falta que alguém que partiu faz. E está totalmente alinhada com a cena que estava sendo gravada quando a reportagem de GZH foi visitar o set do filme Virgínia e Adelaide, que está sendo rodado em Porto Alegre. No momento em questão, as duas personagens — inspiradas em mulheres reais — voltam a se reencontrar, anos depois de uma delas ter viajado para longe.
Com produção da Casa de Cinema de Porto Alegre e coprodução da Globo Filmes e da GloboNews, o filme conta com roteiro de Jorge Furtado, que compartilha a direção com a carioca Yasmin Thayná, estreante em longas-metragens. Inicialmente idealizado como um documentário, o título logo se tornou uma ficção calcada na realidade, que terá apenas as duas protagonistas no elenco. Ou seja, é uma história focada nestas importantes mulheres — em especial, Virgínia —, que sofreram apagamento histórico com o passar dos anos.
— Mas segue sendo um meio documentário, porque a história é real. Todos os fatos públicos e documentados apresentados no filme são reais. Já as sessões, as conversas delas, são ficção. Mas é, principalmente, a história de duas mulheres absurdas. A Virgínia foi a primeira psicanalista do Brasil e da América do Sul. Uma mulher negra. E quando eu fiquei sabendo, pensei: "Como que eu nunca tinha ouvido falar disso?" — explica Furtado.
As duas mulheres se conheceram em 1937, um ano após a chegada da alemã psicanalista Adelheid — aportuguesado para Adelaide — ao Brasil, fugindo da perseguição nazista aos judeus, para onde veio com seu marido e duas filhas. Juntas, fundaram e popularizaram a psicanálise no Brasil, quebrando barreiras e preconceitos. Foram médica e paciente por cinco anos, colegas por mais de três décadas e grandes amigas pela vida inteira. Ambas, pioneiras.
Furtado conta que fez uma grande imersão na vida de Virgínia para escrever o roteiro da produção, após encontrar detalhes da vida da brasileira em um site que listava mulheres de grande importância, mas que foram invisibilizadas. Ele, então, decidiu contar esta história. Mas, para isso, convidou uma promissora jovem cineasta para o ajudar na missão: Yasmin Thayná, de quem admira o trabalho.
— Está sendo um aprendizado — diz a cineasta carioca. — A professora Janaína Damasceno escreveu uma tese chamada Os Segredos de Virgínia. Eu achei esta inversão muito interessante. Ela não usou um termo como invisibilidade, que é mais comum, usou segredo, que é instigante. Um segredo é aquilo que a gente não diz para ninguém. Fazer este filme, então, é colaborar com a tese e dizer que não vamos mais manter a Virgínia em segredo.
As protagonistas
Durante as gravações, Sophie e Gabriela estavam em plena sintonia — algo imprescindível para o bom desenvolvimento do longa-metragem que, afinal, conta somente com as duas no elenco. A dupla se divertia para fazer as cenas e, caso uma delas errasse algo, ambas caíam na gargalhada. Para entrarem no clima, ainda, dançavam no set.
Apesar da atmosfera de descontração, elas sabiam do peso de dar vida a duas mulheres tão significativas para história do país e que, mesmo assim, foram quase relegadas ao esquecimento.
— A gente está contando uma história urgente. O Brasil tem muitas histórias que se precisa tirar a pedra de cima. Então, a Virgínia enquanto socióloga, psicanalista e pesquisadora, sofreu um apagamento muito grande. Eu mesma não conhecia ela — conta Gabriela. — E é curioso que ela, uma mulher racializada da forma que ela era, com mãe italiana e pai brasileiro, filho de uma mulher escravizada, foi a primeira pessoa a se deitar em um divã no Brasil.
Para a protagonista, esse ponto mostra os conflitos da identidade no país e coloca Virgínia como uma personagem fascinante, principalmente por ela começar a pesquisar sobre raça, colorismo e ascensão social no contexto urbano ainda nas décadas de 1930 e 1940. Isso, para Gabriela, demonstra que a psicanalista era uma pessoa disruptiva e, em sua análise, está sendo um desafio prazeroso dar vida a ela.
— É muito doido fazer uma mulher que já existiu, que tem uma vida documentada, mas que, ao mesmo tempo, não tão documentada assim. Ela tem muita produção, muitas fotos, mas eu tive que imaginar muito dessa Virgínia, que tem poucos documentos em audiovisual — relata Gabriela, explicando que, para essa construção, foi necessário bastante ensaio em cima de um trabalho investigativo sobre a vida da psicanalista.
A outra metade desta história, Adelaide, tem como intérprete Sophie, que é nascida na Alemanha e, por isso, bem como por seu talento na atuação, foi convidada por Furtado para estrelar o longa-metragem. Na produção, além dela falar em alguns momentos a sua língua-natal, também explora a sua veia musical, tocando piano de verdade, ou seja, usando as suas expertises na composição da personagem.
Recém vinda de uma participação em um filme hollywoodiano, O Assassino (2023), de David Fincher, a atriz se diz privilegiada por poder transitar por diversas narrativas interessantes e por ajudar a contar histórias importantes, como a de Virgínia e Adelaide, independentemente do tipo de produção.
— Todo o projeto tem o seu encanto, tem o seu porquê. Todos esses projetos são oportunidades que aparecem na minha vida. Eu aprendo — diz a atriz. — Contar a história destas duas mulheres importantes, no caso da Adelaide, a vinda dela para o Brasil, fugindo da Alemanha nazificada, tudo isso me instigou, me interessou. Então, o objetivo é este: contar histórias, independentemente de onde a gente esteja, do gênero e do tamanho do projeto. Sou muito feliz de estar aqui.
O set
Ao passar pela Rua Coronel Bordini, no bairro Rio Branco, na Capital, é possível ver de longe que algo especial está acontecendo por ali. Em frente ao imóvel em que o longa-metragem está sendo gravado, vans e carros da produção estão parados, bem como uma grande quantidade de equipamentos — totalizando mais de duas toneladas de material, indo do carrinho do travelling até iluminação para recriar a claridade do sol, o que deixa o set bem quente.
Cordões de isolamento delimitam o espaço em que é possível transitar — para cada cena, a via é fechada momentaneamente, para não haver reflexo dos automóveis nos móveis da casa, afinal, a produção se passa entre 1937 e 1959, com uma frota que era bem diferente, tanto de design quanto de barulho emitido.
A casa, um espaçoso sobrado, faz as vezes de um imóvel em São Paulo e, ali, boa parte da história se passa, entre sala, pátio e consultório — para emular o programa de rádio comandado por Virgínia, bem como os simpósios e outros lugares em que a dupla esteve na vida real, a produção gravará cenas no Tecnopuc, em frente a um chroma key, construindo um cenário virtual.
No local, a equipe de gravação, que é formada por 55 pessoas, corre para dar conta de rodar o filme em apenas 10 diárias. Com o tempo curto, Furtado e Yasmin filmavam de 8 a 12 páginas de roteiro por dia — cada uma equivale a mais ou menos um minuto do longa-metragem. A expectativa é que o título tenha mais ou menos 88 minutos e entrará em pós-produção logo após a conclusão das gravações.
A produção tem um orçamento estimado de R$ 1,6 milhão — valor considerado baixo, visto que há 20 anos, com O Homem Que Copiava, por exemplo, Furtado gastou o dobro. A aposta, então, foi centralizar as câmeras apenas nas duas protagonistas e, para as externas, preencher com imagens de arquivos que estão sendo adquiridas de vários lugares do mundo. Assim, se dará a vida do "meio documentário", misturando cenas reais de São Paulo, Londres e Alemanha com as gravadas em Porto Alegre em 2023.
Virgínia e Adelaide chega aos cinemas na segunda metade de 2024.