— Às vezes, de noite, está tudo em silêncio e, do nada, escuto um estouro. São as construções desabando — conta a moradora Fernanda Bastos Quadros, 41 anos, que vive a poucos passos da cidade cenográfica de Santa Fé, em Bagé, construída para as filmagens do longa-metragem O Tempo e o Vento (2013), dirigido por Jayme Monjardim e que estreou nos cinemas em 20 de setembro de 2013.
Se na obra original de Erico Verissimo (1905-1975), adaptada pelos roteiristas Tabajara Ruas e Letícia Wierzchowski, um dos principais objetivos da família Terra-Cambará é manter imaculado o solo do sobrado em que vive, sem a presença dos Amaral nele, hoje, seria impossível manter qualquer resistência ali. Isso porque o local, considerado quase sagrado pelos personagens da história — que é ficcional —, encontra-se no chão, reduzido a entulho, assim como praticamente todo o vilarejo.
E não foi apenas o casarão que deixou de existir nos últimos 10 anos: a cidade cenográfica toda encontra-se no mesmo estado — com exceção de duas construções que, depredadas, teimam em ficar de pé, mas já não possuem janelas, portas e apenas com resquícios de telhado. Estão condenadas ao mesmo destino das demais. O que antes serviu para contar uma das histórias mais impressionantes da cultura gaúcha e, depois, para receber visitantes, atualmente, chama atenção pela total devastação.
A velha placa de madeira, presa acima do portão que já não serve para nada, uma vez que toda a cerca ao redor foi arrebentada ou furtada, é o único meio de identificar, aos forasteiros, que aquela área se trata da cidade cenográfica de Santa Fé. Ainda naquela que seria a entrada, um pequeno recinto de madeira que foi, no passado, uma bilheteria, relembra que o espaço chegou a cumprir, por algum tempo, o seu destino de receber turistas e fãs da obra de Erico — a entrada, durante o período, custava R$ 5.
Morando de frente para a entrada da cidade cenográfica, em uma rua de chão batido que não tem nome, Paulo Casartelli, 45 anos, atualmente trabalha com curtume, mas, em 2012, foi chamado pela produção de O Tempo e o Vento para ajudar a erguer Santa Fé. Ele e mais dois colegas foram responsáveis por fazer as muretas de pedras que permeiam as casas — e, curiosamente, são as únicas construções que seguem de pé.
— Tinha uma turma boa trabalhando ali. Depois de pronto, fiquei por dois anos fazendo ronda na cidade cenográfica, como contratado. Era um movimento bagual. Só que, depois, largaram de mão. Ainda hoje, mesmo com tudo no chão, vem gente visitar. Imagina se tivesse bom. Ia ser um rico lugar, ainda mais para Bagé, que não tem quase nada. Agora, olho para ali e só posso lamentar — desabafa o vizinho do que sobrou de Santa Fé.
Mas, antes de contar como o local chegou a tal situação, é importante voltar no tempo. Ainda no começo da década passada, Bagé, entre diversos municípios gaúchos interessados, foi escolhida para servir de locação para O Tempo e o Vento, visando ganhar evidência para o Brasil inteiro, bem como movimentar economicamente a região. O prefeito da época, Dudu Colombo, cedeu um espaço público, dentro do Parque do Gaúcho, a cerca de quatro quilômetros do centro da cidade, para que o vilarejo fosse construído.
Segundo a produção do longa, foi feito um investimento de cerca de R$ 1,5 milhão para colocar de pé 17 construções típicas do século 19, que ocuparam uma área aproximada de 10 mil metros quadrados. A direção de arte trabalhou para fazer um retrato o mais próximo do fiel da arquitetura daquela época, a partir de meses de pesquisa, com casas de chão batido e telhado de palha. Ainda dedicou uma atenção especial para a clássica figueira, que ficava localizada no centro de Santa Fé e servia como ponto de encontro dos personagens: a árvore artificial foi projetada no Rio de Janeiro, contava com uma estrutura metálica e precisou de 15 dias para chegar ao Rio Grande do Sul — milhões de folhas, inclusive, foram encomendadas e vieram diretamente da China. Cada detalhe foi muito pensado.
Tudo foi feito para que, com a magia do cinema, o espectador embarcasse em uma viagem para a época das guerras e revoluções gaúchas. Após as filmagens, que ocorreram no primeiro semestre de 2012, o acordo com o governo municipal foi de entregar o local utilizado como locação para ser explorado turisticamente — e, de fato, foi o que aconteceu. Porém, as casas, apesar de apresentarem fundações feitas de alvenaria, pedra e concreto, contavam, em sua maioria, com paredes construídas com OSB (espécie de compensado de madeira), com uma pintura que apenas simulava alvenaria. Ou seja, frágil, temporário. Com muita manutenção, o espaço, talvez, aguentasse de pé por três anos.
— Se o poder municipal tivesse começado, assim que entregamos a cidade, a fazer as substituições das paredes por alvenaria, o espaço estaria em pé hoje e Bagé não teria ficado um dia sequer sem aquela atração, que tinha um potencial enorme. Fui lá visitar duas vezes, depois do fim das gravações e, na última, decidi que não iria mais, para não ver a destruição do local — afirma o produtor executivo Beto Rodrigues, 66 anos, da Panda Filmes, coprodutora do filme.
Ainda de acordo com o profissional gaúcho, ele foi quem mais tempo se envolveu com o projeto — cerca de um ano e meio —, visto que Monjardim, enquanto rodava o longa, ainda estava no comando de uma novela no Rio de Janeiro. Assim, Rodrigues criou um afeto especial por Santa Fé e, nos primeiros meses após a entrega do vilarejo para a prefeitura, o produtor enfatizou que houve um cuidado "louvável", com o cercamento da área e até mesmo a colocação de uma bilheteria. A ideia dele, inclusive, era doar itens utilizados no longa-metragem para um museu no local.
Porém, a cidade não conseguiu dar continuidade à manutenção e sequer fazer a transposição do casario para alvenaria. O produtor aponta, ainda, que o prefeito da época, Dudu Colombo (PT), até que tentou recorrer aos ministérios da Cultura e do Turismo, na ânsia de salvar o local. Sem conseguir estabelecer parceria com o governo federal, o chefe do executivo municipal construiu um projeto e mandou para votação da Câmara de Vereadores, com a intenção de fazer um leilão de Santa Fé para a iniciativa privada e, assim, manter viva a cidade cenográfica. Segundo o político, sequer foi votado.
— Tentamos manter com os recursos públicos, do município, mas não era possível. A ideia era vender a área toda, que acho que gira em torno de um hectare. Lamentamos, na época, que o Legislativo não tenha dado a importância necessária para o espaço. Seria, com certeza, uma grande fonte de renda e impulsionaria o município — destaca Colombo.
O ex-chefe do Executivo de Bagé recorda que a cidade cenográfica acabou fechando definitivamente para o público ainda em sua gestão, por questões de segurança, uma vez que as estruturas já estavam sucumbindo. Assim, os últimos visitantes que puderam conhecer Santa Fé como ela foi idealizada para a produção do filme estiveram por lá no começo de 2016. Desde então, o local foi largado à própria sorte, com tentativas fracassadas de fazê-lo voltar às glórias de antes.
Dois Rodrigos Cambará
Quando desembarcou em Bagé para interpretar o icônico Capitão Rodrigo Cambará, Thiago Lacerda logo ficou impressionado com a cidade cenográfica. Para o artista, aquele espaço levou verdade para O Tempo e o Vento e, além disso, fez com que a produção se aproximasse da comunidade e gerou uma emoção genuína nos envolvidos, construindo relações mais fortes — uma delas, inclusive, cruzou os limites da cidade cenográfica.
Ao chegar por aquelas bandas, o ator ouviu da equipe da cenografia: "Já conheceu o Capitão Rodrigo?". Era um cachorro de rua, que liderava uma matilha no Parque do Gaúcho.
— Imediatamente, o tal Capitão Rodrigo colou em mim, ficou de meu chapa. E aí eu gravava, ele vinha, o Jayme (Monjardim) gritava "corta", ele ia embora. A gente foi ficando amigo e, no final do filme, eu trouxe o Capitão comigo para o Rio de Janeiro. Foi uma conexão muito forte entre nós dois, parece que ele sabia quem era o Capitão Rodrigo — recorda Lacerda.
Intérprete de Juvenal Terra, cunhado do Capitão Rodrigo, Cris Pereira teve o mesmo sentimento ao encontrar com Santa Fé. Ao andar pela cidade cenográfica, sentiu-se mergulhado em uma viagem no tempo, ficando impressionado com a grandeza e os detalhes do espaço — desde praça, passando pelos bolichos, até as árvores.
— Tudo muito perfeito. É o lance da magia da arte, que traz um ambiente verdadeiro, mesmo que ele não tenha existido. A produção deixou tudo como a gente imaginava quando leu O Tempo e o Vento e, então, era muito louco chegar lá e ver a leitura ganhando vida. Era uma cidade mesmo, e tu ficava imerso no personagem, vivendo naquele vilarejo. As pedrinhas no chão, a carroça passando, o costelão 12 horas no fogo de chão, do lado da árvore, o baile que esteve na rua com as bandeirinhas penduradas. Era possível entrar nas casas e era tudo detalhadamente bem feito. Um potencial enorme — explica Pereira, frisando que era tema de todos os atores lerem a obra original.
Lacerda conta que tentou ajudar a manter a cidade em pé, colocando-se à disposição das autoridades públicas para, por exemplo, gravar vídeos, fazer participações no local sempre que estivesse por Bagé e, também, doar itens pessoais que utilizou nas filmagens, como o chiripá, para criar um acervo dedicado ao longa-metragem.
— Quando a gente estava filmando, era muito evidente que aquilo era uma maravilha, que era uma oportunidade muito interessante para Bagé. E eu acho que o fato de a cidade cenográfica não ter permanecido, de não existir mais, revela muito sobre a falta de visão, a falta de educação e a falta de proposições do poder público e da própria sociedade em que a gente vive. Essa ruína é um fracasso da sociedade de Bagé e do Estado do Rio Grande do Sul. Inadmissível que um município como Bagé, que tinha um potencial econômico e cultural, tenha deixado a cidade cenográfica se deteriorar com o tempo. Todos nós fomos incompetentes na tentativa de preservar aquilo — reflete o ator.
Já Pereira, que aproveitou a oportunidade em O Tempo e o Vento para mostrar sua faceta de ator dramático, fugindo da comédia, acredita que um clássico como a obra de Erico Verissimo poderia ter ali, em Bagé, a chance de ganhar um templo de exaltação à sua importância, atraindo novas gerações para a leitura e, também, ressaltando a relevância do cinema nacional. Ele acredita que a adaptação Monjardim deveria ter tido ainda mais projeção do que teve.
— Eles deixaram a cidade cenográfica como quando terminou a guerra. Essa ideia de reconstruir, de refazer, estou escutando há bastante tempo. Diziam "nós vamos manter isso", "vai virar tal coisa", passou 10 anos e não aconteceu nada. Eles vão, agora, revitalizar? Estou escutando isso há muito tempo. Então esse papo de que vão fazer, para mim, são só palavras — diz Pereira.
Reconstrução à vista
No começo deste ano, o governo de Bagé, que é comandada desde 2017 pelo prefeito Divaldo Lara, decidiu dividir a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo em duas — Cultura e Turismo, acreditando no potencial de trazer visitantes para o município. E, à frente desta última pasta está a engenheira civil Aliane da Croce, 35 anos, que tem como principal objetivo a reconstrução de Santa Fé. Ela pretende representar os esforços da comunidade em manter o local — inclusive, há resquícios de uma tentativa desesperada de bageenses comuns de preservar o que restou da cidade cenográfica, com paredes de tijolos sendo erguidas na parte de dentro de uma das edificações que seguem de pé. Não resolveu, e a estrutura base praticamente se desfez.
— Anos atrás, houve uma mobilização de pessoas, os mais apaixonados pelo espaço, que tentaram manter a cidade viva, colocando ali seus recursos próprios. Não foi o suficiente, infelizmente — recorda a secretária, apontando que, nos relatórios da pasta, a média de visitação de Santa Fé era de 450 pessoas por mês.
Enquanto alguns prezavam pela existência do local, Aliane explica que outros tantos colaboraram para a cidade cenográfica sucumbir. De acordo com a titular da pasta de Turismo, pessoas dos arredores invadiam o espaço para furtar telhas e outros materiais.
A afirmação da secretária vai ao encontro do que dizem os vizinhos do que restou de Santa Fé. A doméstica Miriam Cuadros Noble, por exemplo, relembra que o espaço tinha bastante visitação, mas, com o tempo, deixou de atrair turistas para ser um chamariz de quem queria tirar proveito das estruturas.
— Antes, até tinha guardinha, mas depois deixou de ter. Aí, o pessoal começou a vir para roubar os telhados, as madeiras. Volta e meia encostava uma carroça ali e saia carregada. É uma pena, né? De vez em quando, alguém para e pergunta o que era aquilo ali. Se funcionasse, poderia colocar o nosso lugar aqui no mapa. Não temos nem nome aqui na rua. As nossas correspondências não podemos receber, temos que cadastrar o endereço de algum parente que mora mais no centro — lamenta Miriam.
Agora, por meio de uma emenda parlamentar do deputado federal Afonso Hamm (PP), de 2019, conseguiu-se um valor de R$ 270 mil e, em contrapartida, foram incrementados mais R$ 241 mil do município. Com esse montante, será reerguida a primeira parte do projeto, agora encabeçado por Aliane, que é o icônico sobrado dos Terra-Cambará. No terreno, a empresa B3 Engenharia, contratada por meio de licitação, já construiu as fundações, mas parou no contrapiso. O motivo? A segurança.
— Tudo o que deixa aqui, o pessoal leva. É descampado. Então, nesta etapa, como é um sobrado, em dois pavimentos, a empresa está fazendo na oficina as ferragens, até o segundo pavimento. Depois, eles vêm e montam. E ainda tem uma praticidade que, se chove, eles conseguem seguir produzindo. Se estão no terreno, se chove, para tudo — aponta Aliane.
Segundo a secretária, se tudo der certo, o primeiro casarão estará de pé até o final do ano e, ali, será construído um centro cultural, com um acervo dedicado ao filme de 2013 — inclusive, a produção deixou roupas e outras peças utilizadas nas gravações. Esse espaço será o centro de um ecossistema que entregará aos visitantes experiências gastronômicas e artísticas. Assim que a estrutura estiver de pé, a secretaria pretende fazer um convênio com alguma organização de Bagé para administrar e cuidar do local.
Em paralelo com o sobrado dos Terra-Cambará, a construção de seis casas menores já está sendo viabilizada, com apoio do governo do Estado, por meio da Secretaria de Turismo, que já sinalizou positivamente com R$ 2,5 milhões — falta, agora, o município entregar o projeto detalhado para a liberação da verba. A igreja, também, deverá ser reerguida, com o apoio de uma produtora de Pelotas, que coincidentemente se chama Santa Fé.
Dessa forma, espera-se que até o final de 2024 oito construções estejam prontas para que o espaço comece a receber o público — as outras nove do projeto inicial serão erguidas conforme mais verbas forem sendo liberadas. Porém, será uma jornada longa e, quem decide visitar o local, percebe que ainda tem muito trabalho pela frente.
— Provavelmente, só o paisagismo será mantido, com os coqueiros. O resto todo será refeito. É uma pena que levaram até a árvore bonita que tinha aqui, a figueira — relembra Aliane. — Tem um potencial gigante de transformar isso aqui em uma rota nacional turística. E o maior desafio não é nem tirar Santa Fé do chão, mas, sim, manter tudo, porque a população destrói. Vamos ter que fazer um projeto de conscientização com o povo, para desenvolver o sentimento de pertencimento — pondera ainda.
O novo projeto reerguerá os prédios tentando se aproximar o máximo possível do original criado para o filme — até a planta baixa da Santa Fé do filme está nas mãos da equipe da Secretária de Turismo. Porém, algumas mudanças precisarão ser feitas, como adaptar os telhados de algumas casas que eram feitos de palha ou, então, paredes de barro —esses materiais demandam muita manutenção e têm pouca durabilidade. A ideia é deixar tudo o mais sólido possível, para que o processo de degradação não atinja tão cedo o espaço, deixando-o resistente ao tempo e ao vento.
"E nasce o sol e põe-se o sol. E volta ao seu lugar onde nasceu. O vento vai para o Sul e faz o seu giro para o Norte. Continuamente vai girando o vento. E volta fazendo os seus circuitos. Uma geração vai, outra geração vem. Porém, a terra para sempre permanece", diz Bibiana (Fernanda Montenegro) ao final de O Tempo e o Vento, reforçando que o chão segue no mesmo lugar, paciencioso, esperando.