— Porto Alegre é uma cidade muito cinematográfica, principalmente por causa da luz. A luz daqui é mais oblíqua que a do resto do Brasil e essa é a luz mais bonita. Quanto mais deitada a luz, mais bonita ela fica e aqui, a luz é sempre assim, principalmente no outono e na primavera. No inverno, ela tem esse cinza, que é muito bonita também — explica o diretor e roteirista Jorge Furtado, sentado em sua sala na Casa de Cinema de Porto Alegre, com uma luz cinza entrando pelas grandes janelas.
Esses elogios à cinematografia da Capital não são da boca para fora. Ele usou a cidade para criar um dos pontos altos do cinema nacional deste século, que se passa justamente em uma Porto Alegre cinzenta, onde um jovem decide fazer uma cópia de uma nota de R$ 50 para comprar um chambre na loja em que sua paixão platônica trabalha. A partir disso, cria-se uma espiral de confusões que termina com um grupo de amigos milionário, dois cadáveres e uma galinha sobrevivendo a uma explosão dentro de um armário.
Este é o resumo de O Homem Que Copiava, que está completando 20 anos de lançamento neste 13 de junho, consolidado não apenas como um clássico do cinema gaúcho, mas também nacional. O filme produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre, entretanto, ainda vai além da curiosa trama descrita acima, sendo também a síntese do começo de um comportamento de futuras gerações.
Furtado percebeu, ainda nos anos 1990, que a internet estava caminhando para ser parte da vida das pessoas de maneira simbiótica e ao ler uma notícia na época, que dizia que o tempo de permanência em cada página era de apenas oito segundos — hoje, ele acredita que é ainda menor —, decidiu criar um personagem que refletisse este comportamento:
— As pessoas ficam pulando de coisa para coisa e não se aprofundam em nada. Então, sabem um pouquinho sobre muita coisa, mas não sabem muito sobre nada. E aí eu achei que um operador de fotocopiadora, alguém que faz cópias e fica lendo as coisas que copia, é um pouco esse símbolo: alguém que não consegue ler mais do que o tempo do trabalho dele.
Levar esta reflexão sobre a nova mentalidade da população para as telas, porém, custou um bom tempo de preparo. O cineasta trabalhou na história por cinco anos — de 1996 até 2001, quando o longa foi finalmente filmado. Apenas a personalidade do protagonista demorou um ano inteiro para ser desenvolvida. Foi somente depois da criação do herói principal que os demais personagens foram surgindo e ganhando os seus arcos.
Curiosamente, enquanto escrevia o script, Furtado já foi pensando nos atores que viveriam os coadjuvantes — Leandra Leal (Silvia), Pedro Cardoso (Cardoso) e Luana Piovani (Marinês). O único personagem que o roteirista não conseguia visualizar era o próprio André, o protagonista. Decidiu, então, convocar audições — participaram nomes como Wagner Moura e Mateus Solano. Mas, por indicação de Leandra, o cineasta também fez teste com um jovem artista que despontava no teatro e prometia um grande desempenho no vindouro filme Madame Satã (2002). O nome deste talento em ascensão, como todos sabem, era Lázaro Ramos.
O ator fez o teste em vídeo no Rio de Janeiro, mas não sabia quem era o diretor e nem para qual filme era. Foi chamado, então, para vir a Porto Alegre e só quando chegou na Casa de Cinema, ele descobriu que o cineasta responsável pelo projeto era Furtado, de quem Lázaro afirma ser um admirador de muito anos. Nervoso por achar que teria de fazer um novo teste, ele demorou para entender que, antes mesmo de entrar no local, já tinha sido escolhido para viver André.
— Conversando com o Fiapo Barth e com a Rô Cortinhas, diretor de arte e figurinista, eles começaram a falar se cortariam o meu cabelo, o que fariam na pele etc. Só aí eu entendi que eu já tinha passado para o filme (risos). E foi muito lindo, uma alegria da vida, porque eu já tinha me encantado com eles, com o trabalho da Casa de Cinema. Já tinha valido a pena só ir lá — garante o artista.
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Sem mexer em nada
Lázaro, inclusive, ainda guarda na memória um ponto que lhe marcou: Furtado não mudou uma única linha sequer do roteiro para explicar o motivo de o protagonista da produção ser um jovem negro. E isso ocorreu em um período em que a luta pela igualdade racial não estava tão em evidência quanto está hoje em produções audiovisuais — apenas em 2016, por exemplo, ocorreu o movimento #OscarsSoWhite, denunciando que apenas atores brancos foram indicados ao Oscar daquele ano.
— Como ator negro, teve essa coisa muito legal: vários atores de várias etnias fizeram teste e o Jorge manteve o personagem exatamente igual como ele tinha planejado. Não adaptou, como em alguns casos que aconteceram ao longo da minha carreira, em que colocavam justificativa por ser um ator negro que estava fazendo o personagem. Isso foi muito importante — explica Lázaro.
Para Furtado, este tipo de atitude deveria ser regra, não exceção. Ele salienta que reforçar a etnia de André seria apenas necessário se o longa abordasse, por exemplo, o racismo:
— Se o filme não fala disso, então, não faz diferença. E eu acho que o racismo é o grande problema brasileiro, somos o país mais racista do mundo. Todas as formas de enfrentamento são necessárias. Fazer filmes que falem sobre isso é muito importante, mas fazer filmes que não falem sobre isso também é importante. Tem de botar protagonistas negros para viverem qualquer personagem.
Cópias e originais
A questão da cópia esteve presente em todo o processo do longa-metragem. E não foi somente de notas de dinheiro. A equipe, por exemplo, replicou em estúdio a fachada do prédio de Silvia nos mínimos detalhes. Assim, em todas as cenas em que André olha a amada com o binóculo, a personagem está em uma reprodução do edifício que realmente existe na Avenida Presidente Franklin Roosevelt, no bairro São Geraldo.
Neste processo de copiar, também é importante apontar que o diretor ainda quis colocar, em diversos pontos do filme, elementos que são duplicados — a capa de um livro que reaparece em uma animação, o Cristo Redentor que aparece em miniatura e depois em tamanho real e por aí vai:
— Dá para fazer esse exercício de ficar procurando. Tudo tem duplo, cópia. Quando ele está zapeando a TV, por exemplo, tem uma cena que aparece de A Noite de São Lourenço (filme de 1992), que tem um cara todo espetado com lanças, que remete à morte do Feitosa lá no final, que vai ser espetado. Nada é uma vez só.
O longa também aposta muito em criações — a começar pela história, que acabou sendo, ironicamente, copiada pelo cinema indiano. Mas um dos responsáveis pela originalidade do longa é Fiapo Barth — sim, o proprietário do emblemático Bar Ocidente —, que trabalhou como diretor de arte no projeto, assim como na maioria dos filmes de Furtado.
Arquiteto, coube a Fiapo o desafio de transformar os cenários para que a história de André fosse acomodada em Porto Alegre, utilizando a cidade como um dos principais componentes do longa. Neste processo, ele ainda se dedicou a deixar tudo tão natural e universal que a história poderia se encaixar em qualquer lugar do mundo.
Outro ponto de atenção era não deixar que a produção ficasse datada e, apesar de o filme ter sido rodado em 2001, ele envelheceu bem. Conseguiu a façanha de se manter atual graças à montagem dinâmica de Giba Assis Brasil, à produção primorosa de Nora Goulart, ao roteiro sagaz de Furtado e também ao detalhado trabalho de Fiapo. Mas não foi fácil. O arquiteto encontrou o maior desafio durante o longa com a criação do lar de André e sua mãe, vivida por Tereza Teixeira. O cenário fugia completamente do campo de conhecimento do diretor de arte.
— Foi por razões particulares minhas, bem sérias, porque eu sou de uma cidade de colonização alemã, com uma segregação grande. Eu vim pra Porto Alegre, fui estudar Arquitetura com uma segregação maior ainda. Então, no dia em que o Jorge me disse que o personagem principal seria negro, eu fiquei sem chão, porque a minha maior falha de conhecimento de estética, de genealogia, seria para uma família negra. Até fazer o filme, eu não frequentava casas de pessoas pretas. Então, eu tinha de desenvolver, dentro da minha ignorância, um universo que era alheio a mim — confessa Fiapo.
O trabalho foi um catalisador para a ampliação de mundo e também do trabalho artístico de Fiapo, que se debruçou sobre o desafio para levar às telonas uma realidade até então desconhecida por ele e se esforçou para equilibrar os cenários com delicadeza e cuidado para não ser ofensivo. Ele voltou ao universo de uma família negra no filme seguinte de Furtado, Meu Tio Matou um Cara (2004), também com Lázaro Ramos — e hoje, ambos nutrem um carinho mútuo, um citando o outro em suas respectivas entrevistas.
POA
Quando dirige, Furtado sempre filma no Rio Grande do Sul. Logo, Porto Alegre foi uma escolha natural — o diferencial, neste caso, foi fazer da Capital um personagem à parte. Entretanto, o cineasta tinha uma visão única de como ele queria que a cidade fosse retratada em seu filme: tinha de ser cinza, invernal. Tanto é que a primeira cena rodada do longa foi gravada na Redenção, em um dia de sol e mostrava um diálogo entre André e uma "guria esperta" vivida por Sheron Menezzes, em seu primeiro papel no audiovisual.
Tem de botar protagonistas negros para viverem qualquer personagem
JORGE FURTADO
Cineasta
Ao chegar na ilha de edição, o diretor viu que o seu filme não era nada daquilo, descartou toda a sequência e a regravou, desta vez em um dia nublado, no Cais Mauá. Ali, sim, Furtado encontrou o tom que queria — a partir disso, ele decretou que em dias de sol, o longa seria gravado em estúdio e, em dias cinzentos, a equipe iria para a rua. Assim, olhar para o céu era o primeiro passo de um dia de gravação.
Como a cidade é uma das protagonistas da trama, Furtado fez questão de detalhar um traço de sua personalidade.
— O Hitchcock dizia que "quando filmar em Paris, enquadra a Torre Eiffel", as coisas típicas do lugar. E eu pensei: "Se vou filmar em Porto Alegre, vou filmar a nossa ponte móvel. Quem mais tem uma ponte móvel que passa um navio por baixo?". Tinha de colocar isso no filme de algum jeito. Enfiei aquela história da ponte e foi a cena mais difícil de filmar da minha vida até hoje.
O gaúcho Julio Andrade, intérprete do bandido Feitosa — que tem um trágico fim justamente na ponte —, salienta que o sucesso de O Homem Que Copiava vem de uma série de fatores somados, desde o roteiro primoroso de Furtado até os grandes atores que brilham no projeto. Porém, ele destaca também o fator Porto Alegre na equação:
— Eu acho que é um filme muito importante na nossa cinematografia, que consegue levar essa música de Porto Alegre para o Brasil, esse friozinho, esse jeito de lidar com a vida, os nossos costumes. Mostra uma Porto Alegre que a gente que mora aí reconhece.
De fato, a cidade retratada pelo filme, até então comum para os porto-alegrenses, ainda era pouco vista por quem era de fora. Lázaro, por exemplo, ao começar a gravar pelas ruas da Capital, surpreendeu-se:
— A maioria dos filmes que eu conhecia feitos no Rio Grande do Sul não eram urbanos. Foi uma outra ambiência, trazia uma Porto Alegre que não era muito vista na dramaturgia até então. Eu, inclusive, como baiano, me encantei por isso. Tem uma cena no porto, em que eu e a Leandra estamos lá, que é inesquecível para mim, é um outro Brasil, é uma outra Porto Alegre.
E por falar em Leandra, Furtado sempre teve vontade de trabalhar com a atriz, até que conseguiu que tudo se encaixasse e convidou a jovem para ser uma das personagens principais de O Homem Que Copiava. Ela aceitou de pronto, já que também era um sonho dela participar de um projeto do cineasta.
— Para mim, foi uma coisa incrível, porque eu era fã dele. Depois, eu até fui chamada para fazer uma novela, mas aí não daria para fazer O Homem Que Copiava, só que eu queria tanto fazer, eu queria tanto trabalhar com o Jorge, que é um gênio. Daí, não fiz essa novela para conseguir estar no filme.
Tal como a trama do longa, nem tudo dá certo logo de cara e a atriz conta que, após ter pedido dispensa do folhetim, o início da produção acabou sendo adiado. Ela, então, decidiu viajar para o Exterior para realizar uma capacitação até que as filmagens começassem:
— Eu estava em Nova York no 11 de Setembro, estudando, e foi uma loucura essa época. O Jorge então me ligou e falou: "Agora vai rolar". Eu estava lá fazendo um curso, aí coloquei esse plano fora, voltei e fui para Porto Alegre para gravar o filme.
Bastidores
Depois de muito tempo de preparação, com storyboards e muito estudo de como gravar o filme, a turma toda se reuniu em Porto Alegre — até mesmo Pedro Cardoso, que tinha medo de voar e, por isso, decidiu viajar do Rio de Janeiro para cá dirigindo o seu carro. Foram dois meses de filmagens de O Homem Que Copiava, com muitas histórias curiosas ocorrendo nos bastidores.
Furtado guarda na lembrança momentos que fizeram do filme algo único, com um astral positivo. O diretor narra, por exemplo, que mesmo a obra tendo sido muito planejada, ainda era uma comédia e, por isso, chegou em um momento em que falou para os atores no set se divertirem "fazendo besteira". Em uma das cenas, é possível ver esta liberdade:
— Eu não tenho a menor ideia de como é a reação de alguém que ganha na loteria. Eu não sei o que faria, não tenho ideia. Aí, quando os dois ganham, eu disse: "Vão lá, eu vou abrir a câmera e vocês façam o que vocês quiserem". Os dois palhaços, o Lázaro e o Pedro, fazem "Babalu, Babalu da Califórnia", aí choram, aí riem. Aí, eu fiz uma colagem daquilo e ficou muito engraçado.
Já para Júlio Andrade, que teve o seu primeiro papel de destaque em um longa-metragem com O Homem Que Copiava, essa liberdade dada por Furtado gerou uma irritação momentânea — inclusive, ele acredita que tal episódio nem é de conhecimento do diretor.
Tudo começou com a preocupação de gravar uma cena em que teria uma discussão com o personagem de Lázaro Ramos em um ferro-velho. O momento era tenso e, marinheiro de primeira viagem, Andrade foi pedir orientação para Furtado para mudar o seu estado de espírito para o momento:
O lugar que mais marcou foi o Brique da Redenção, que eu gostava muito, sem falar do Ossip e do Ocidente. Foram dois outros lugares que eu frequentei muito
LÁZARO RAMOS
Ator
— Eu cheguei para ele e perguntei: "Jorge, e essa cena? O que você me diz?". Aí ele falou: "Julinho, você está de cara com ele". E eu lembro que fiquei tão irritado com o Jorge, porque ele só me falou aquilo, que o meu estado de espírito mudou e eu fui para a cena indignado. E joguei tudo na cena. E ficou tão incrível que ele não quis nem fazer cobertura, outros planos. Ele deixou um take só. Quando me caiu ficha, eu abri um sorriso para ele, o abracei e falei: "Você é foda" (risos) — relembra o ator.
O clima era tão amigável que o quarteto principal, que era de fora do Estado, também se sentiu em casa e passou o período das gravações desbravando Porto Alegre, tanto durante as filmagens, que se passaram em pontos como Cais Mauá, Navegantes e Bom Fim, como nos momentos de folga. Lázaro e Leandra, por exemplo, recordam dos jantares oferecidos por Furtado na casa do cineasta, bem como os passeios pela cidade.
— O lugar que mais marcou foi o Brique da Redenção, que eu gostava muito, sem falar do Ossip e do Ocidente. Foram dois outros lugares que eu frequentei muito. Tanto é que, até hoje, para fazer amizade com alguém que é de Porto Alegre, eu pergunto: "E aí, como é que está o Ossip? E o Ocidente? Fechou? Como foi na pandemia?" São assuntos de conexão minha com os gaúchos até hoje — conta Lázaro.
— No período em que fiquei na cidade, vi tanta coisa boa, a Redenção, o Ocidente. Foi muito importante para mim ter feito O Homem Que Copiava. Foi tudo muito bonito — reforça Leandra, que, no final, ganha um arco importante com a sua personagem, fazendo o fechamento da história e se encontrando com Paulo, personagem vivido pelo saudoso Paulo José.
A continuação e a galinha
Em uma era em que as sequências dominam os cinemas, Jorge Furtado garante que O Homem Que Copiava não vai ganhar continuação — mesmo que ele seja considerado um grande sucesso, tendo conquistado 700 mil espectadores. Para o cineasta, a história se encerra bem e não existe a necessidade de retornar às vidas daqueles personagens que, por sinal, ele não considera exemplares.
— Os nossos heróis são assassinos e não são punidos. Em uma lógica dramatúrgica, com aquele pai abusador, a gente fica feliz porque ele morreu. Mas teve gente que torceu o nariz para isso. Na pré-estreia no Rio, na saída, teve uma senhora, que eu vi que era evangélica, que me disse: "Gostei muito do filme, mas acho que deveria colocar uma frase no final, dizendo que três dias depois, eles foram presos" (risos).
Um dos motivos da impunidade é a galinha que o quarteto coloca no armário da casa do pai de Silvia, vivido por Carlos Cunha Filho, pouco antes da explosão do lugar. Quando encontram o homem morto, mas a ave viva, a imprensa dá o foco para o animal — tanto é que, no jornal, a foto de destaque é a de um bombeiro com a galinha debaixo do braço.
— É uma crítica não somente à imprensa, mas a todos nós, todo mundo que se preocupa com coisas bestas, como a galinha. O cara matou uma pessoa (risos), a galinha é o de menos. Tinha até grupo de Orkut que se chamava A Galinha de O Homem Que Copiava, com pessoas discutindo, dando palpite para o que servia a galinha. Eu acho que está claro no filme: eles colocaram ela lá para distrair e as pessoas ficarem pensando "para que serve essa galinha?". E deu certo (risos) — diverte-se Furtado.
Apesar de ser destaque em um sucesso nacional, a galinha deixou os holofotes do mundo do cinema e não foi localizada pela reportagem.