
Um filme pode não mudar a realidade, mas pode fazer com que a vejamos de um modo diferente e, assim, a compreendamos melhor.
Foi o que declarou Carlos José Fontes Diegues — mais conhecido como Cacá Diegues — em entrevista a Zero Hora em 2018. Em seus 84 anos de vida, ele dedicou mais de 60 a instigar espectadores com sua obra.
Cacá morreu na madrugada desta sexta-feira (14). A causa não foi divulgada pela família. Ele deixa três filhos, três netos e a esposa Renata Almeida Magalhães, com quem era casado desde 1981.
Um dos nomes essenciais da história do cinema nacional, o diretor se afirmou ao retratar a identidade do povo brasileiro em suas produções, envoltas em temas sociais e existenciais. Seus filmes representaram o Brasil em candidaturas ao Oscar sete vezes, sendo o maior número já alcançado por um cineasta do país.

Cinema Novo
Cacá foi um dos precursores do Cinema Novo — movimento com proposta autoral que era crítico da desigualdade social e da realidade política do Brasil — nos anos 1960. Em entrevista à rádio CBN em 2017, ele refletiu sobre o período:
— A gente não estava fazendo somente cinema para o país, estava fazendo um país para o cinema também.
Uma de suas primeiras produções dentro do Cinema Novo é Cinco Vezes Favela (1962), que reúne cinco curtas-metragens dirigidos por cinco cineastas: além de Cacá, há Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges e Marcos Farias. Ele é o responsável pelo segmento Escola de Samba: Alegria de Viver.
Naquele período, Cacá se notabilizou por produções como Ganga Zumba (1964), A Grande Cidade (1966) e Os Herdeiros (1969). No final dos anos 1960, precisou deixar o Brasil por conta da ditadura e foi morar na Europa. Passou a maior parte do exílio na França e um pouco na Itália.
Cacá retornou ao Brasil em 1972 e realizou Quando o Carnaval Chegar (1972), que tem Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia no elenco. Depois de Joanna Francesa (1973), protagonizado pela atriz francesa Jeanne Moreau, dirigiu Xica da Silva (1976), seu maior sucesso popular, que levou mais de 3 milhões de espectadores ao cinema.
Em 1980, foi lançado seu mais aclamado filme: Bye Bye, Brasil. O longa reúne nomes como José Wilker, Betty Faria e Fábio Jr. e segue três artistas cruzando o Nordeste com uma caravana.

Clipe dos Engenheiros do Hawaii
Foi na década seguinte, mais especificamente em 1991, que Cacá dirigiu o clipe de O Exército de Um Homem Só I, da banda Engenheiros do Hawaii. Sobre a experiência de ter trabalhado com o cineasta, o cantor e compositor Humberto Gessinger recorda:
— Era um momento em que a produção de clipes no Brasil estava ficando mais profissional. Foi a primeira vez que trabalhamos com uma equipe grande, com locações interessantes. Eram dois mundos se aproximando, o do cinema clássico e o do videoclipe. Cacá é um grande conhecedor da cultura brasileira para além do cinema. Dialogar com ele sobre a parcela gaúcha dessa cultura foi muito legal.
Durante o período da Retomada do cinema nacional, Cacá produziu Tieta do Agreste (1996), Orfeu (1999) e Deus É Brasileiro (2003). Seu longa mais recente é O Grande Circo Místico, que saiu no Festival de Gramado de 2018.
O último filme de Cacá está previsto para ser lançado no segundo semestre de 2025: Deus Ainda É Brasileiro, spin off do longa de 2003. Natural de Maceió (AL), o cineasta decidiu homenagear seu estado natal com a produção, que acabou sendo sua derradeira.

Militante de cinema
Cacá sempre trabalhou com sua curiosidade de entender o quebra-cabeças que é o Brasil, como contou em entrevista a Zero Hora em 2003.
— Não existe um Brasil ideal. Ele é feito de fragmentos de realidade que você vai juntando — analisou o cineasta.
Ao refletir sobre sua relação com o cinema em entrevista ao programa Roda Viva em 1987, atestou:
— Eu não sou um profissional de cinema, eu detesto essa palavra, profissional de cinema. Eu sou um militante de cinema, eu faço cinema 24 horas por dia. Eu não sou uma pessoa que está aí somente para pegar uma câmera e fazer um filme profissionalmente bem feito.
Eu sou um militante de cinema, eu faço cinema 24 horas por dia
CACÁ DIEGUES
Em entrevista ao programa "Roda Viva" em 1987
Alma brasileira
Para Daniel Rodrigues, presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), Cacá é o cineasta brasileiro que mais conseguiu captar e expressar aspectos da alma brasileira em sua pluralidade.
— Era atento não só a aspectos da história do Brasil em filmes como Ganga Zumba, Quilombo e Xica da Silva, mas também a aspectos de uma cronicidade urbana, como Orfeu e Chuvas de Verão. Há outros filmes mais lúdicos como Bye Bye, Brasil e Quando o Carnaval Chegar, mas que se passam dentro desta urbe e envolvem muitos aspectos da cultura brasileira, que ele consegue sintetizar em sua obra — destaca Daniel.
O crítico acrescenta que Cacá aproveitou bem a obra de músicos brasileiros, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Jorge Ben, Gilberto Gil e Nara Leão — com quem foi casado entre os anos 1960 e 1970. Aliás, Veja Esta Canção (1994) trabalha com quatro segmentos, cada um inspirado em canções.
— Ele consegue se valer de uma grande potencialidade da cultura brasileira, que é a obra musical desses grandes autores, e utiliza isso no audiovisual de uma forma muito apropriada e verdadeira — acrescenta Daniel.
Imortal da ABL
Além do cinema, Cacá era um imortal: em 2018, foi eleito para a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Era colunista do jornal O Globo, no qual homenageou em um de seus últimos textos a atriz Fernanda Torres, citando uma das frases ditas por ela: "A vida vale a pena".
"Fazer a vida valer a pena não significa acumular riquezas ou status, mas sim viver com propósito, em equilíbrio. A mensagem que fica é que a vida deve ser um palco para a expressão pessoal. Que cada um de nós encontre seu próprio caminho para fazer da vida uma honra", escreveu.