O alerta é de Jorge Furtado, diretor de O Homem que Copiava, que completa 20 anos de estreia no mês que vem e pode ser visto na plataforma Globoplay.
— No filme, tudo aparece pelo menos duas vezes.
Agora quem avisa é o autor deste texto: a exemplo do principal personagem da história, um carinha que opera a máquina de xerox de uma papelaria da zona norte de Porto Alegre e só lê fragmentos dos livros e trabalhos que copia, aqui você não vai saber nem metade da missa. A razão é simples: seria um crime contar o que acontece após o jovem André (Lázaro Ramos) decidir falsificar uma nota de R$ 50 para comprar um presente na loja onde trabalha seu amor platônico, Sílvia (Leandra Leal) — enquanto o hilariante Cardoso (Pedro Cardoso) faz de tudo para seduzir a lindíssima Marinês (Luana Piovani). Seria frustrar a surpresa e o suspense do público.
O Homem que Copiava (2003) é uma colagem de gêneros — comédia, drama, aventura, romance, tragédia — e uma coleção de referências (vão de Shakespeare a Teixeirinha, de Mozart a Creedence Clearwater Revival). Furtado começou a escrever o roteiro em 1996, bem antes de rodar seu primeiro longa-metragem, a comédia romântica adolescente Houve uma Vez Dois Verões (2002). Estava interessado em retratar uma geração que sabe pouco sobre tudo, mas quase nada por inteiro, a turma do controle remoto e da internet. Naqueles tempos ainda incipientes dos smartphones e das redes sociais, quem seria mais apropriado para contar uma história sobre fragmentação do que um operador de fotocopiadora? E André é justamente isso, o narrador.
Na meia hora inicial, ele situa o cenário: é o 4 º Distrito, em Porto Alegre, mas com as típicas liberdades geográficas de Jorge Furtado. O protagonista mora na esquina da Rua Moura de Azevedo com a Avenida Presidente Roosevelt, onde também ficam a antiga sede da Sociedade Gondoleiros e o fictício Banco Imobiliário. A livraria onde ele trabalha é, na verdade, a Bayadeira, no bairro Bom Fim. A loja onde a mocinha trabalha é, na verdade, a Tásken (na época, Casa Elsa), na Cidade Baixa.
Cenas importantes acontecem à beira do Guaíba e na ponte sobre o Guaíba, e O Homem que Copiava tirou do esquecimento um monumento histórico de Porto Alegre. Trata-se de uma fonte com duas ninfas, localizada em uma praça no cais do porto (à direita do portão principal, passando os armazéns), há muito tempo desativada, depredada e isolada pela linha do Trensurb. A obra integrava o plano de embelezamento da cidade, na gestão de Otávio Rocha como intendente, e foi modelada entre 1927 e 1928 por Alfred Adloff, um dos mais importantes escultores do período. São de sua autoria, por exemplo, as alegorias do Viaduto Otávio Rocha e a Camponesa com o Cântaro e o Monumento a Rio Branco, na Praça da Alfândega.
André também descreve a monotonia do trabalho —"Aqui você liga e desliga a máquina. Está vendo? Liga. Desliga. Liga. Desliga. Liga, desliga" —, o silencioso convívio com a mãe, seu gosto por desenhar, seu desejo por dinheiro e sua paixão por Sílvia, a vizinha a quem espiona de binóculo. Tudo em off, como o monólogo interior de um voyeur.
Também no início da história, Jorge Furtado começa a praticar a experimentação de formas narrativas e o estilo de hipertexto que já havia marcado a obra do diretor dos premiados curtas Ilha das Flores (1989) e Esta Não É sua Vida (1992). O Homem que Copiava somou mais troféus a seu currículo. Foram seis no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro: melhor filme, direção (empatado com Héctor Babenco, de Carandiru), ator coadjuvante (Pedro Cardoso), atriz coadjuvante (Luana Piovani), roteiro original (do próprio Furtado) e montagem (Giba Assis Brasil). Já Lázaro Ramos ganhou como melhor ator no Festival de Havana.
Entre os fãs famosos da obra, está Fernando Meirelles, o diretor de Cidade de Deus (2002), que recebeu quatro indicações ao Oscar. Em entrevista ao programa Vídeo Show do dia 9 de junho de 2003, o cineasta disse que O Homem que Copiava era "o melhor filme brasileiro dos últimos 20 anos". Outro apreciador, digamos, ilustre é o indiano Swathi Bhaskar. Em 2009, ele rodou na província de Kerala Currency, que tem a mesma trama do longa gaúcho e mostra sequências idênticas — intercaladas, claro, com os tradicionais números musicais do cinema daquele país asiático, como contou a reportagem de Carlos Redel em GZH.
De volta ao autêntico O Homem que Copiava, Jorge Furtado define André como um esquizofrênico salvo pelo amor — só resolve deixar seu complexo mundo interior a partir do "olhar estruturante" de Sílvia. Os dois têm algo em comum: a complicada figura paterna. O rapaz foi abandonado pelo pai, e a moça tem uma relação desajustada com o seu.
Se a dupla sustenta o lado dramático do enredo, e Cardoso e Marinês são impagáveis na arte de fazer rir, o dinheiro entra como um quinto personagem.
— Os personagens são jovens sem profissão que sonham com dinheiro, um tema tabu na dramaturgia. Aliás, na vida real também: as pessoas contam tudo, menos quanto ganham — apontou em entrevista às vésperas da estreia o cineasta.
Que, quando fala, também é dado a remissões:
— O Millôr diz: o dinheiro é tão sedutor que não precisa apelar para o sexo. Nunca tem mulher bonita nas notas, só gente feia!