No dia 30 de agosto de 2002, 99 salas de 12 capitais (fora Porto Alegre, onde a estreia ocorreu em 6 de setembro) lançaram um filme brasileiro que se tornou um marco no cinema mundial: Cidade de Deus, um mosaico sobre o surgimento, o desenvolvimento e a hegemonia do tráfico de drogas em um conjunto habitacional da zona oeste do Rio, entre os anos 1960 e 1980.
Hoje disponível no Globoplay e no Paramount+, Cidade de Deus concorreu em quatro categorias do Oscar — direção (Fernando Meirelles), roteiro adaptado (Bráulio Mantovani, a partir do romance homônimo de Paulo Lins publicado em 1997), fotografia (César Charlone) e edição (Daniel Rezende) —, disputou o Globo de Ouro de longa-metragem internacional e ganhou mais de 70 prêmios. No Festival de Cannes, onde teve exibição fora de concurso, em maio daquele ano, foi aplaudido em pé durante sete minutos. Entrou na lista dos 100 melhores de todos os tempos elaborada pelos críticos Richard Schickel e Richard Corliss para a revista Time, dos Estados Unidos, em 2005, e no ranking compilado em 2018 pela BBC, do Reino Unido — aparece na 42ª posição entre os 100 grandes títulos estrangeiros (é o único representante sul-americano e o único no idioma português).
Cidade de Deus também fez sucesso junto ao público. No Brasil, onde, contrariando o padrão, o número de salas de exibição foi aumentando a cada semana — na terceira, as 99 da estreia viraram 200 —, atraiu 3,3 milhões de espectadores. À época, era uma das 25 maiores bilheterias na história das produções nacionais (atualmente, está na 45ª colocação). Recentemente, foi considerado o segundo filme não falado em inglês mais visto no mundo, de acordo com um estudo conduzido pela plataforma online Preply junto ao site IMDb. Está atrás do francês Os Intocáveis (2011) e à frente de outra obra francesa, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), do japonês A Viagem de Chihiro (2001) e do sul-coreano Parasita (2019).
A influência do filme — sem Cidade de Deus, talvez não houvesse Tropa de Elite (2007), Alemão (2014) e a série Dom (2021-), por exemplo — igualmente extrapolou fronteiras. Diretor da adaptação em anime do mangá Tekkonkinkreet (2006), Michael Arias pediu que sua equipe assistisse ao título brasileiro, como referência. O criador do seriado da Marvel Luke Cage (2016-2018), Cheo Hodari Coker, revelou ter se inspirado no longa. Que também ajudou o ator Michael B. Jordan na composição de Erik Killmonger, o vilão de Pantera Negra (2018), segundo disse o astro estadunidense em entrevista ao jornal O Globo:
— Quando a gente (Jordan e o cineasta Ryan Coogler) fez Fruitvale Station: A Última Parada (2013), vimos o filme várias vezes. E pensamos em como nós, frutos do gueto, conseguíamos entender, até sem som, os personagens do Rio de Janeiro. Fiz pesquisa para Killmonger vendo Cidade de Deus, que se tornou um de meus favoritos na vida. Quando Ryan disse que ele queria que os meninos de Cidade de Deus se vissem na tela em Pantera Negra, ele resumiu de uma forma bem crua o sumo deste nosso papo.
A cena da galinha
Podia-se vislumbrar que o filme alçaria um voo alto desde sua abertura — que, ironicamente, é estrelada por uma galinha. O samba embala um churrasco na Cidade de Deus. O cardápio inclui frangos, que vão sendo depenados e escaldados. Uma das aves escapa do seu destino e é perseguida por um bando armado, sob o comando de Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora).
A galinha que tenta fugir da violência e que quase é atropelada por um camburão da polícia alude à trajetória do protagonista e narrador, Buscapé (vivido por Luis Otávio quando criança e depois por Alexandre Rodrigues). É ele, um aspirante a fotógrafo profissional, quem nos guia pelas vielas de uma comunidade que foi construída para ser residência de funcionários públicos do antigo Estado da Guanabara, mas acabou virando endereço dos milhares de desabrigados pelas fortes chuvas do janeiro de 1966. Mais tarde, tornou-se um amontoado de concreto controlado por traficantes. Hoje, tem cerca de 50 mil moradores e um dos piores índices de desenvolvimento humano na capital fluminense.
Buscapé também nos orienta na estrutura fragmentada e circular de Cidade de Deus, que vai e volta na vida dos principais personagens — a forma narrativa, a ágil linguagem cinematográfica e até o universo retratado permitem paralelos com Os Bons Companheiros (1990), de Martin Scorsese, e Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino. Em cena, estão tipos como Cabeleira (Jonathan Haagensen), o líder do Trio Ternura, grupo de ladrões que, na década de 1960, partilhava seus lucros com a população; Cenoura (Matheus Nachtergaele), traficante de drogas que terá papel decisivo na guerra deflagrada nos anos 1980; Mané Galinha (Seu Jorge), ex-atirador do Exército e hoje um honesto e carismático cobrador de ônibus; e, claro, Dadinho (Douglas Silva), o menino perverso que, ao crescer, anuncia sua nova identidade em uma frase antológica:
— Dadinho é o caralho, meu nome agora é Zé Pequeno, porra!
Estetização da miséria e espetacularização da violência
Tirando Nachtergaele e Seu Jorge, que já fazia carreira na música, o elenco não tinha experiência artística — até mesmo Alice Braga, no papel de Angélica, namorada de Bené (Phellipe Haagensen), estava recém estreando. No documentário Cidade de Deus: 10 Anos Depois (2013, disponível em Globoplay e Netflix), atores e atrizes revelam bastidores anedóticos aos diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal, mas também discutem questões como racismo, preconceito, ascensão social e solidariedade.
Quem trabalhou bastante na seleção e na preparação do elenco foi Katia Lund, creditada como codiretora de Cidade de Deus. Ela trazia no currículo o documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999), sobre o tráfico de drogas no Rio, feito em parceria com João Moreira Salles, e os clipes A Minha Alma, da banda O Rappa, e Traficando Informação, do rapper MV Bill.
Pois MV Bill foi um das vozes contrárias ao filme. Aliás, em que pese a aclamação internacional, não foram poucas as queixas em solo brasileiro. Uns apontaram a estetização da miséria, filiando Cidade de Deus ao subgênero favela movie, o de obras produzidas na periferia por diretores de classe média ou até alta — tradição que vinha desde títulos como Cinco Vezes Favela (1962) e Assalto ao Trem Pagador (1962). Outros atacaram a espetacularização da violência (a propósito, há 32 mortes ao longo dos 130 minutos de duração). Em entrevista a ZH, Bill reclamou:
— A violência no filme é tratada de forma glamorizada. Para a imprensa, para a crítica especializada, está bonito. Mas tenho receio de que a forma como a violência é focada no filme prejudique o morador da favela. Nós já carregamos um estigma de marginal, de criminoso, e o filme reforça isso. Tenho medo de que o cidadão honesto sofra ainda mais com a discriminação na hora de procurar um emprego, por exemplo.
Autor do livro, Paulo Lins contra-atacou, lembrando de show no qual o rapper tinha um revólver na mão ("O MV Bill quer aparecer, pegar carona"). Também rebateu a crítica de que o filme "embeleza o sofrimento":
— A ideia das elites é que pobre não se diverte, não é feliz. Mas as pessoas vivem, amam, dançam em baile funk, trepam...
A resposta premonitória de Fernando Meirelles
Entrevistado por Roger Lerina na ZH de 5/9/2002, Fernando Meirelles comentou:
— Acho essa leitura (a da estetização) muito estreita e equivocada. O que é estetizar? Onde Cidade de Deus é estetizado? Glauber Rocha (1939-1981, diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro) queria fazer seus filmes com muito contraste como uma referência ao cordel. Isso não é estetização? Sim. Uma estetização típica de diretor de clipe. Nenhum problema com isso. Há esse tipo de críticos, os "sub-glaubers", como são conhecidos, que acreditam que num filme que retrata a pobreza não pode haver alegria, cor, dinâmica. Que tudo deve ser precário e árido. Os moradores das favelas estão condenados por esses sub-glaubers a não poderem ser felizes. Só podem ser pobres e desesperançosos.
Na mesma entrevista, perguntado se havia alguma esperança de solução para frear o crescimento do tráfico e da violência que dominava cada vez mais as favelas cariocas (e não só as cariocas), o cineasta deu uma resposta premonitória:
— Sim: inclusão. Escolas melhores, oportunidades de emprego, lazer, atividades artísticas. Infelizmente, essa solução demora para fazer efeito, no mínimo o mesmo tempo que demorou para o tráfico se estabelecer: uns 25 anos. Mesmo uma polícia reformada e honesta não conseguiria mudar a situação. Conseguiria no máximo segurar os exageros. Estamos condenados a conviver com o problema pelos próximos 25 anos. Só que ainda vai piorar muito, antes de começar a melhorar.
No cenário de hoje, os traficantes se expandiram nacionalmente, controlando, por exemplo, garimpos na Amazônia. Surgidas a partir dos anos 2000, as milícias formadas por policiais e militares para supostamente coibir o narcotráfico celebrizaram-se pela extorsão, pelo controle de serviços (transporte alternativo, botijões de gás, ligações clandestinas de TV etc) e incorporaram a venda de drogas a seus negócios. Já a polícia realizou, entre maio de 2021 e julho de 2022, três das quatro operações mais letais na história do Rio: 28 mortos na Jacarezinho, depois 25 na Vila Cruzeiro e mais 17 no Complexo do Alemão.