Quando anunciaram o Prêmio Especial do Júri para Marte Um, "por ter trazido o afeto para a tela", ficou claro que o filme de Gabriel Martins não seria o grande vencedor do 50º Festival de Cinema de Gramado — essa honra coube a Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho. Mas, embora em menor número do que o merecido, não faltaram Kikitos na bagagem da delegação mineira, que conquistou também as categorias de melhor roteiro (assinado pelo próprio diretor), trilha musical (Daniel Simitan) e o troféu do júri popular.
— Daora — disse Martins ao receber esse último prêmio. — Isso significa que vamos ter público quando o filme estrear no cinema, né?
Em Porto Alegre, Marte Um vai testar sua popularidade, a partir desta quinta-feira (25), em apenas três cinemas e em poucas sessões: Cine Grand Café 3 (às 19h50min, mas só até domingo, último dia de funcionamento do local), Espaço Bourbon Country 2 (às 14h e às 21h) e Sala Eduardo Hirtz (às 14h45min). É um pecado para com uma obra que deveria ter a maior visibilidade possível, dada sua capacidade de comunicação e dado seu retrato de um Brasil tão cotidiano. Se você só pode ver um filme neste fim de semana, que seja este.
A exibição de Marte Um no Palácio dos Festivais, em Gramado, provocou um funga-funga como há muito tempo eu não ouvia em uma sala de cinema. Ao acender das luzes, uma longa fila se formou na plateia para cumprimentar Gabriel Martins e os quatro atores principais: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião e Cícero Lucas.
Lançado mundialmente no Festival de Sundance (EUA), em janeiro, este é o primeiro longa-metragem solo de Martins, 34 anos (em 2019, codirigiu com Maurílio Martins No Coração do Mundo, e seu currículo inclui o curta Nada, de 2017, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes). Ao apresentar o filme, em que atua como diretor, roteirista, coeditor e coprodutor, ele disse:
— Sou um homem negro e periférico. Como os produtores e os atores deste filme em que a gente pode contar sobre nossas experiências. Façamos um brinde ao futuro. Que o cinema negro e o cinema periférico possam prosperar.
Divulgado como "um filme sobre sonhos e estrelas", segundo a sinopse oficial, Marte Um começa em 28 de outubro de 2018. Enquanto um telejornal anuncia a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência e fogos de artifício e gritos de guerra ecoam nas ruas, um menino negro, Deivid (Cícero Lucas), mira o céu.
Estamos em Contagem, o terceiro município mais populoso (673,8 mil habitantes) de Minas Gerais, situado na região metropolitana de Belo Horizonte. Deivid, o Deivizinho, é filho de Wellington (Carlos Francisco, o Damiano de Bacurau) e de Tércia (Rejane Faria, a Néia da segunda temporada da série Segunda Chamada) e irmão caçula de Eunice, a Nina (Camilla Damião, egressa do teatro).
Essa família, batizada com o mesmo sobrenome do diretor (que evoca sonoramente Marte), vai tendo suas personalidades e seus conflitos apresentados sem pressa, mas com foco. Deivizinho é um craque do futebol de várzea, mas sonha em ser astrofísico, como o estadunidense Neil DeGrasse Tyson, e participar de uma missão — referida no título — que em 2030 pretende iniciar a colonização do planeta vermelho.
Wellington, porteiro em um condomínio de classe alta, se orgulha de estar há quatro anos sem beber e sonha com o ingresso do filho no seu time de coração, o Cruzeiro. O pai vê essa chance crescer quando um ídolo cruzeirense, o ex-jogador argentino Juan Pablo Sorín (vivido por ele próprio), se muda para o edifício onde trabalha.
O sonho de Nina é alugar um apartamento para ir morar com a namorada, Joana (Ana Hilário). A cena na qual as duas se conhecem, em uma boate, é uma das mais bonitas e sensuais do cinema brasileiro em 2022, assim como a cena em que os pais descobrem a sexualidade da filha é uma das mais delicadas e engraçadas da temporada.
Faxineira em casas como a do anão humorista Tokinho (no papel dele mesmo), Tércia, por sua vez, não sonha: tem pesadelos e sofre de insônia desde que foi vítima de uma pegadinha de mau gosto em uma lanchonete.
À medida que as jornadas convergem e os personagens divergem, o que começara em tom de comédia dramática passa a roçar na tragédia — a ponto de o pai, a certa altura, dizer: "A gente se fodeu, família!".
Mas Marte Um, vale repetir, é um filme sobre sonhos e estrelas. Um filme sobre esperança e otimismo, um filme que alumia a alma. Brilhou naquela noite de Gramado graças à simbiose entre Gabriel Martins, os atores e a equipe técnica.
Uma das opções mais felizes do diretor foi a de filmar planos longos e evitar ao máximo os cortes — no Palácio dos Festivais, ele me disse que, durante a produção, várias vezes orientou o diretor de fotografia Leonardo Feliciano a assumir o risco de não fazer contraplanos (ou seja, mostrar por outro ângulo um diálogo, por exemplo). Essa decisão demonstra a confiança e o carinho de Martins para com o elenco. E, combinada à autenticidade do design de produção assinado por Rimenna Procópio e dos figurinos elaborados por Marina Sandim, ajuda a tornar Marte Um um filme tão imersivo e tão naturalista: parece que estamos juntos aos personagens, parece que esses personagens são gente de verdade.
Uma família de verdade. Que vai brigar e ter perrengues, mas que se ama e se cuida. Talvez a cena que melhor simbolize isso seja a da cadeira. Sempre que penso nela, me arrepio e fico com os olhos marejados por lembrar daquele abraço pelas costas.