Noites Alienígenas atravessou o Brasil para conquistar o 50º Festival de Cinema de Gramado. Produzido no Acre, o filme dirigido por Sérgio de Carvalho ganhou na noite deste sábado (21), no Palácio dos Festivais, cinco Kikitos: melhor longa-metragem brasileiro, ator (o estreante Gabriel Knoxx, rapper como o seu personagem), ator coadjuvante (Chico Diaz), atriz coadjuvante (Joana Gatis) e o troféu da crítica. Também recebeu uma menção honrosa pela atuação de Adanilo.
— Foi um filme óvni que aterrissou em Gramado e foi uma grande surpresa — celebrou o diretor, lembrando o comentário da crítica de cinema Maria do Rosário Caetano.
— A gente vem de um lugar que sofreu muito bullying, com pessoas dizendo que não existia. Mas a gente existe. A foto da cultura brasileira costuma ser muito branca e masculina, mas agora nós, mulheres, indígenas, negros, demos uma empurradinha para o lado e estamos na foto também. Nunca mais este festival será igual, porque hoje abriu uma porta ao reconhecer a cultura periférica. A gente é fruto de política pública, de dinheiro descentralizado, que chega lá nas bordas — afirmou, no palco, a produtora executiva Karla Martins, toda vestida de vermelho, cor que marcou o figurino da equipe.
A propósito, praticamente todos os vencedores aproveitaram o púlpito para manifestarem apoio ao candidato do PT à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e repúdio ao atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL), que pleiteia a reeleição. Na hora da foto oficial com os ganhadores dos Kikitos distribuídos no encerramento do festival (além dos longas brasileiros, foram premiados os curtas nacionais, os filmes estrangeiros e as produções da Mostra Gaúcha), alguns dos vencedores desfraldaram uma bandeira com os dizeres "Fora, Bolsonaro".
Com estreia comercial prevista para 2023, Noites Alienígenas sintetizou uma tônica desta edição de Gramado: a de dar visibilidade e voz às populações marginalizadas e às comunidades periféricas. Entre os outros longas nacionais laureados, está Marte Um, que recebeu quatro Kikitos — Prêmio Especial do Júri ("pelo afeto na tela"), melhor roteiro (Gabriel Martins, diretor do filme), música e o troféu do júri popular — ao acompanhar os sonhos e os perrengues de uma família negra da periferia de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte.
Já A Mãe, que ganhou três categorias, incluindo a de direção (Cristiano Burlan, porto-alegrense radicado em São Paulo) e a de atriz (Marcelia Cartaxo, vencedora em 2019 por Pacarrete), é ambientado em um bairro pobre da capital paulista, o Jardim Romano, onde a protagonista luta para encontrar o filho adolescente — desaparecido após uma abordagem policial.
A competição de curtas-metragens foi toda nessa pegada. Fantasma Neon (RJ), de Leonardo Martinelli, ganhador de quatro Kikitos — melhor filme, direção, ator (Dennis Pinheiro) e troféu da crítica, além da aquisição do Canal Brasil —, é um musical sobre os entregadores de aplicativo que usam bicicleta. Tendo a precarização do trabalho como tema, mistura atores e não atores, ficção e depoimentos reais ("Ralo para ganhar cinco reais por hora. Quando tive covid, me fizeram escolher entre trabalhar mesmo doente ou passar fome", ouve-se logo no começo). Sem abrir mão da comunicação com o grande público, o curta experimenta, assume riscos — é uma surpresa quando um grupo de entregadores realiza um vibrante número de dança. E o epílogo conta com um dueto musical nas vozes dos atores Dennis Pinheiro e Silvero Pereira (o Lunga de Bacurau).
O Pato (PB), que valeu a Fernando Domingos o prêmio de roteiro, tem uma protagonista negra e nordestina que encara a violência doméstica. Imã de Geladeira (SE), de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo, mereceu menção honrosa "por catapultar a urgente discussão sobre o racismo estrutural através do horror cósmico".O Elemento Tinta (SP), de Iuri Salles e Luiz Maudonnet, venceu a categoria de montagem e o júri popular ao retratar praticantes do pixo que decidem protestar contra o governo após a morte de um amigo por covid-19.
Salles, vale citar, estrelou uma das surpresas da cerimônia comandada por Marla Martins e Renata Boldrini, que várias vezes precisaram apressar o andamento da premiação (a festa começou às 21h15min e terminou faltando poucos minutos para a 1h). Do púlpito, o codiretor de O Elemento Tinta pediu em casamento a namorada, sentada na plateia.
Outro momento fofo foi a premiação de Anaís Grala Wegner como melhor atriz na Mostra Gaúcha, por Despedida, filme em que atuou quando tinha 12 anos. Após tremer e chorar bastante, incrédula, ela arrematou:
— Tomara que isso valha ponto na média, porque estou faltando às aulas.
A Amazônia e as drogas
A história de Noites Alienígenas é inspirada no romance homônimo publicado em 2011 pelo próprio diretor, que nasceu no interior de São Paulo, formou-se em cinema no Rio de Janeiro e há 20 anos mora no Acre, e se passa nos limites entre o urbano e a Floresta Amazônica. O título tem um duplo sentido. Por um lado, alude à porção realismo mágico do filme; por outro, sinaliza para uma triste realidade: a abdução da juventude de Rio Branco, a capital do Estado, pelo crime organizado, a partir da chegada das facções do Sudeste. Segundo Noites Alienígenas, nos últimos 10 anos o número de homicídios aumentou 183% entre adolescentes e jovens. E o poder público parece omisso: não se vê policiais nem viaturas em cena.
Com planos belíssimos, ora colando a câmera no corpo dos atores (ou até dos animais, como uma cobra), ora inserindo os personagens na paisagem exótica, Carvalho faz rodar uma trágica ciranda de tipos e situações que não deixam de ser clichês. Mas essa condição é minimizada pela paixão do elenco — quase todo praticamente amador — e pela relevância sociopolítica da trama.
A figura de Paulo, vivido por Adanilo, ilustra a ruína dos povos indígenas perante o tal de "progresso" das cidades: ele se tornou dependente químico e rouba pertences da própria mãe para comprar drogas. Há um rapper de 17 anos, Rivelino, o Riva (papel de Gabriel Knoxx), que é apaixonado pela garçonete e mãe solteira Sandra (Gleici Damasceno, vencedora do BBB 18) e que acaba se juntando a uma facção. E é atrás de notícias sobre esse garoto que uma mãe hedonista e em princípio um tanto distante, Beatriz (Joana Gatis), vai à casa de Alê (Chico Diaz), um traficante "das antigas", que não compactua da violência empregada pelos novos barões do crime, que rimam irmandade com mortandade — uma imagem emblemática é a do soldado do tráfico que carrega uma arma na cintura e, às costas, traz tatuado o nome de Jesus Cristo.
Discursos dos vencedores
Joana Gatis e Chico Diaz não puderam estar presentes no Palácio dos Festivais, onde Gabriel Knoxx protagonizou um dos momentos mais emocionantes da cerimônia. O jovem tinha acabado de descer do palco, onde falara em nome dos colegas coadjuvantes, quando descobriu que havia sido escolhido pelo júri como melhor ator. Às lágrimas, refez o caminho no corredor da plateia e voltou ao púlpito.
— Desculpe. Eu realmente não estava esperando — disse, enquanto tentava domar a emoção que fazia sua voz tremer e quase sumir. — Dedico esse prêmio à minha mãe, à minha tia e à minha avó. Fui criado por três mães solteiras. Quantas vezes eu não pensei em desistir? Mas elas me fizeram continuar.
Antes, Knoxx valorizara a importância dos prêmios de Noites Alienígenas junto a adolescentes e jovens acrianos desafiados pela pobreza ("Minha casa ficava em cima de um esgoto", ele lembrou) e acuados ou seduzidos pela criminalidade, mostrando que a arte "é um caminho".
— Sonhos são possíveis — afirmou o ator.
Suas palavras foram ecoadas nos agradecimentos de Gleici Damasceno, que fez um trocadilho involuntário:
— A gente vai voltar para o Acre acreditando.
Todos os premiados
LONGAS-METRAGENS BRASILEIROS
- Melhor filme: Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho (mais R$ 40 mil em dinheiro)
- Direção: Cristiano Burlan (A Mãe)
- Ator: Gabriel Knoxx (Noites Alienígenas)
- Atriz: Marcélia Cartaxo (A Mãe)
- Ator coadjuvante: Chico Diaz (Noites Alienígenas)
- Atriz coadjuvante: Joana Gatis (Noites Alienígenas)
- Roteiro: Gabriel Martins (Marte Um)
- Fotografia: Rui Poças (Tinnitus)
- Montagem: Eduardo Serrano (Tinnitus)
- Direção de arte: Carol Ozzi (Tinnitus)
- Desenho de som: Ricardo Zollner (A Mãe)
- Trilha musical: Daniel Simitan (Marte Um)
- Prêmio Especial do Júri: Marte Um, de Gabriel Martins
- Júri da crítica: Noites Alienígenas
- Júri Popular: Marte Um
- Menção honrosa: Adanilo (ator de Noites Alienígenas)
CURTAS-METRAGENS
- Melhor filme: Fantasma Neon (RJ), de Leonardo Martinelli (mais R$ 10 mil em dinheiro)
- Direção: Leonardo Martinelli (Fantasma Neon)
- Ator: Dennis Pinheiro (Fantasma Neon)
- Atriz: Jéssica Ellen (Último Domingo, RJ)
- Roteiro: Fernando Domingos (O Pato, PB)
- Fotografia: Fernando Macedo (Último Domingo)
- Montagem: Danilo Arenas e Luiz Maudonnet (O Elemento Tinta)
- Direção de arte: Joana Claude (Último Domingo)
- Desenho de som: Alexandre Rogoski (O Fim da Imagem, PR)
- Trilha musical: Nhanderekoa Ka'aguy Porã, pelo Coral Araí Ovy e Conjunto Musical La Digna Rabia (Um Tempo para Mim, RS)
- Prêmio Especial do Júri: Serrão (MG), de Marcelo Lin
- Júri da crítica: Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli
- Júri Popular: O Elemento Tinta, de Luiz Maudonnet e Iuri Salles
- Menção honrosa: Imã de Geladeira (SE), de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo
- Prêmio Canal Brasil: Fantasma Neon
FILMES ESTRANGEIROS
- Melhor filme: 9, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca (mais R$ 25 mil em dinheiro)
- Direção: Néstor Mazzini (Cuando Oscurece)
- Ator: Enzo Vogrincinc (9)
- Atriz: Anajosé Aldrete (El Camino de Sol)
- Roteiro: Agustin Toscano, Moisés Sepúlveda e Nicolás Postiglione (Inmersión)
- Fotografia: Sergio Asmstrong (Inmersión)
- Prêmio Especial do Júri: Jeff Calmet, pela direção de arte de La Pampa
- Júri da crítica: 9, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca
- Júri Popular: La Pampa, de Dorian Fernández-Moris
MOSTRA GAÚCHA DE LONGAS
- Melhor filme: 5 Casas, de Bruno Gularte Barreto (mais R$ 10 mil em dinheiro)
- Direção: Bruno Gularte Barreto (5 Casas)
- Ator: Hugo Noguera (Casa Vazia)
- Atriz: Anaís Grala Wegner (Despedida)
- Roteiro: Giovani Borba (Casa Vazia)
- Fotografia: Ivo Lopes Araújo (Casa Vazia)
- Montagem: Vicente Moreno (5 Casas)
- Direção de arte: Gabriela Burk (Despedida)
- Desenho de som: Marcos Lopes e Tiago Bello (Casa Vazia)
- Trilha musical: Renan Franzen (Casa Vazia)
- Júri Popular: 5 Casas, de Bruno Gularte Barreto
- Menção honrosa: Clemente Vizcaíno (Despedida) e Campo Grande É o Céu, de Bruna Giuliatti, Jhonatan Gomes e Sérgio Guidoux
DOCUMENTÁRIOS
- Melhor filme: Um Par para Chamar de Meu, de Kelly Cristina Spinelli (mais R$ 10 mil)
- Menção honrosa: Elton Medeiros: O Sol Nascerá, de Pedro Murad