Na penúltima noite de competição no Festival de Gramado, pintou o filme favorito para conquistar Kikitos em várias categorias, no sábado (20): Marte Um, de Gabriel Martins. Ao final da sessão de quarta-feira (17) no Palácio dos Festivais, o diretor mineiro e os quatro atores principais (Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião e Cícero Lucas) foram ovacionados. Uma longa fila se formou para cumprimentá-los. Boa parte dos espectadores — aí incluídos integrantes dos concorrentes na mostra de longas brasileiros — ainda secava o rosto das lágrimas provocadas pela lindíssima cena final. Foi um funga-funga como há muito tempo eu não ouvia em uma sala de cinema.
Tirando a exibição fora de concurso de A Viagem de Pedro, novo filme da cineasta Laís Bodanzky (que gerou enorme tietagem ao ator Cauã Reymond no tapete vermelho), a noite de quarta foi dedicada a personagens negros e periféricos. O primeiro curta-metragem da programação, Fantasma Neon (RJ), de Leonardo Martinelli, aborda a precarização do trabalho ao mostrar a rotina dos entregadores de aplicativo — particularmente, os que usam bicicleta. É um filme "híbrido", como definiu seu diretor, misturando atores e não atores, ficção e depoimentos reais.
— Ralo para ganhar cinco reais por hora. Quando tive covid, me fizeram escolher entre trabalhar mesmo doente ou passar fome — ouve-se logo no começo.
Fantasma Neon tem o mérito de, sem abrir mão da comunicação com o grande público, experimentar, assumir riscos. É uma surpresa quando um grupo de entregadores realiza um vibrante número de dança. E o epílogo conta com um dueto musical nas vozes dos atores Dennis Pinheiro (estreante) e Silvero Pereira (o Lunga de Bacurau).
O outro curta da noite, Mas Eu Não Sou Alguém? (SP), de Daniel Eduardo e Gabriel Duarte, se passa em uma favela de São Paulo. O protagonista é um menino de nove anos que está descobrindo e questionando seu universo. Problemas na captação de som dificultaram no entendimento dos diálogos, mas as palavras ditas no palco do Palácio dos Festivais deram o recado.
— Os periféricos estão começando a contar as suas histórias — afirmou Daniel Eduardo.
— Todos nós crescemos ouvindo: você precisa estudar, precisa trabalhar, precisa sair da favela para ser alguém — comentou Renata Alves, líder comunitária no Paraisópolis, bairro favelizado da capital paulista. — Mas por que eu preciso sair da favela para ser alguém? A gente não vai sair da favela para ganhar o mundo, a gente vai levar o mundo para a favela.
Essas manifestações ecoaram o que o Gabriel Martins, 34 anos, dissera ao apresentar Marte Um. Trata-se de seu primeiro longa-metragem solo (em 2019, codirigiu com Maurílio Martins No Coração do Mundo, e seu currículo inclui o curta Nada, de 2017, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, e o roteiro de Alemão, lançado em 2014 por José Eduardo Belmonte).
— Sou um homem negro e periférico. Como os produtores e os atores deste filme em que a gente pode contar sobre nossas experiências. Façamos um brinde ao futuro. Que o cinema negro e o cinema periférico possam prosperar — disse Martins, que atua como diretor, roteirista, coeditor e coprodutor em Marte Um.
Gramado foi palco da primeira exibição nacional do filme, que estreou internacionalmente no Festival de Sundance (EUA), em janeiro, e entra em cartaz nos cinemas brasileiros (incluindo salas de Porto Alegre) no dia 25 de agosto — a próxima quinta-feira. Portanto, terá a rara oportunidade de aproveitar o embalo de eventuais Kikitos para impulsionar sua carreira comercial.
Divulgado como "um filme sobre sonhos e estrelas", segundo a sinopse oficial, Marte Um começa em 28 de outubro de 2018. Enquanto um telejornal anuncia a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência e fogos de artifício e gritos de guerra ecoam nas ruas, um menino negro, Deivid (Cícero Lucas), mira o céu.
Estamos em Contagem, o terceiro município mais populoso (673,8 mil habitantes) de Minas Gerais, situado na região metropolitana de Belo Horizonte. Deivid, o Deivizinho, é filho de Wellington (Carlos Francisco, o Damiano de Bacurau) e de Tércia (Rejane Faria, a Néia da segunda temporada da série Segunda Chamada) e irmão caçula de Eunice, a Nina (Camilla Damião, egressa do teatro).
Essa família, batizada com o mesmo sobrenome do diretor (que evoca sonoramente Marte), vai tendo suas personalidades e seus conflitos apresentados sem pressa, mas com foco. Deivizinho é um craque do futebol de várzea, mas sonha em ser astrofísico, como o estadunidense Neil DeGrasse Tyson, e participar de uma missão — referida no título — que em 2030 pretende iniciar a colonização do planeta vermelho.
Wellington, porteiro em um condomínio de classe alta, se orgulha de estar há quatro anos sem beber e sonha com o ingresso do filho no seu time de coração, o Cruzeiro — o pai vê essa chance crescer quando um ídolo cruzeirense, o ex-jogador argentino Juan Pablo Sorín (vivido por ele próprio), se muda para o edifício onde trabalha.
O sonho de Nina é alugar um apartamento para ir morar com a namorada, Joana (Ana Hilário) — a cena na qual as duas se conhecem, em uma boate, é uma das mais bonitas e sensuais do cinema brasileiro em 2022, assim como a cena em que os pais descobrem a sexualidade da filha é uma das mais delicadas e engraçadas da temporada.
Faxineira em casas como a do anão humorista Tokinho (no papel dele mesmo), Tércia, por sua vez, não sonha: tem pesadelos e sofre de insônia desde que foi vítima de uma pegadinha de mau gosto em uma lanchonete.
À medida que as jornadas convergem e os personagens divergem, o que começara em tom de comédia dramática passa a roçar na tragédia — a ponto de o pai, a certa altura, dizer: "A gente se fodeu, família!".
Mas Marte Um, vale repetir, é um filme sobre sonhos e estrelas. Um filme sobre esperança e otimismo, um filme que alumia a alma. Brilhou na noite de Gramado graças à simbiose entre Gabriel Martins, os atores e a equipe técnica.
Uma das opções mais felizes do diretor foi a de filmar planos longos e evitar ao máximo os cortes — no Palácio dos Festivais, ele me disse que, durante a produção, várias vezes orientou o diretor de fotografia Leonardo Feliciano a assumir o risco de não fazer contraplanos (ou seja, mostrar por outro ângulo um diálogo, por exemplo). Essa decisão demonstra a confiança e o carinho de Martins para com o elenco. E, combinada à autenticidade do design de produção assinado por Rimenna Procópio e dos figurinos elaborados por Marina Sandim, ajuda a tornar Marte Um um filme tão imersivo e tão naturalista: parece que estamos juntos aos personagens, parece que esses personagens são gente de verdade.
Uma família de verdade. Que vai brigar e ter perrengues, mas que se ama e se cuida. Talvez a cena que melhor simbolize isso seja a da cadeira, protagonizada por Wellington e Nina. Enquanto escrevo, me arrepio e fico com os olhos marejados por lembrar daquele abraço pelas costas. Anote na agenda: 25 de agosto, quinta que vem, é dia de ir ao cinema para ver Marte Um — o provável campeão do Festival de Gramado.