Já estava muito frio quando começou a última noite de competição do 50º Festival de Cinema de Gramado, nesta quinta-feira (18), mas o Palácio dos Festivais ficou ainda mais gelado diante de Tinnitus, filme do diretor paulista Gregorio Graziosi que encerrou a mostra brasileira. As palmas ao final da exibição foram as mais tímidas ouvidas ao longo do evento.
Antes de Tinnitus, a diretora Paola Mallmann apresentou a única produção gaúcha concorrente às premiações nacionais: o curta-metragem Um Tempo para Mim. Depois de realizar, com Eugenio Barboza, Nhemonguetá (2017), que acompanha o processo de cultivo de sementes e as experiências na mata de comunidades indígenas, a diretora volta a focar o cotidiano desses povos.
O filme foi rodado em uma aldeia mbya-guarani, na região das Missões, com um elenco de não-atores, como as garotas Juliana Almeida Timoteo e Clarice Oliveira Benite, que subiram ao palco com Paola. Em cena, assistimos a uma transformação na vida da adolescente Florência. Criada pela avó, ela fica menstruada pela primeira vez no mesmo dia em que ocorre um eclipse da Lua.
Os quase 21 minutos de duração de Um Tempo para Mim se fazem sentir, devido a uma narrativa bastante convencional. Apesar do encanto natural de Juliana e Clarice, pode-se especular que o filme entrou na competição nacional de curtas apenas por causa de sua temática. Aliás, a tônica da seleção deste ano foi dar visibilidade e voz a personagens excluídos ou marginalizados, como os indígenas e os negros. Ou Socorro do Burajuba, protagonista do documentário Socorro na condição de líder de uma comunidade quilombola de Barcarena, no Pará, onde luta contra a poluição ambiental provocada pela indústria da mineração.
De volta a Tinnitus. Trata-se do segundo longa de Gregorio Graziosi, realizador de Obra (2014). Em Gramado, ele contou a história de Marina Lenk (interpretada por Joana De Verona), uma atleta dos saltos ornamentais que se vê atacada por uma crise de tinnitus — popularmente conhecido como zumbido no ouvido, que pode ser constante ou recorrente. Ela se afasta do esporte e passa a trabalhar fantasiada de sereia em um aquário. Mas um dia resolve voltar às plataformas em busca da medalha que deixara escapar.
A sinopse até que prometia um filme no mínimo curioso. E, no palco do Palácio dos Festivais, Graziosi disse que os curadores do Festival de Karlovy Vary (República Tcheca), onde Tinnitus estreou, haviam destacado o quanto merecia a tela grande. A primeira cena sugere uma ambição política: Marina tem a crise justamente quando o Hino Nacional está sendo executado.
Mas depois disso, Tinnitus vai paulatinamente se revelando um filme de lentidão exasperante (os 105 minutos de duração parecem bem mais); frágil e confuso no conflito que estabelece entre Marina e outras duas atletas (vividas por Indira Nascimento e Alli Willow) e na sua relação com a cultura japonesa; com diálogos péssimos que sabotam o esforço do trio de atrizes e desperdiçam seu coadjuvante de luxo, Antonio Pitanga; e, afora alguns momentos na plataforma de saltos ornamentais, sem muitas imagens que justifiquem a tela grande. Não à toa, os aplausos foram curtíssimos e desacompanhados de assobios ou gritos de incentivo. Foi um senhor anticlímax na comparação com a apoteótica recepção, na véspera, para Marte Um, o grande favorito para a noite de entrega dos Kikitos, neste sábado (20).
A competição de filmes internacionais parece estar mais em aberto. Tirando o pavoroso O Último Animal, rodado no Rio pelo português Leonel Vieira, todos têm méritos. Até Cuando Oscurece, segunda parte de uma trilogia do argentino Néstor Mazzini, prejudicada pela própria sinopse. Na última noite, surgiu um forte candidato a arrebatar alguns prêmios: Inmersión (2021), primeiro longa-metragem do chileno Nicolas Postiglione, que é protagonizado pelo ótimo Alfredo Castro, melhor ator no Festival de Havana por Tony Manero (2008) e astro de O Clube (2015).
Quando os termômetros nas ruas de Gramado já estavam na casa do 0°C, Inmersión fez ranger os dentes mesmo dentro do Palácio dos Festivais. O filme de suspense faz jus ao título, imersão em espanhol. Mergulhamos na história de Ricardo, um pai de classe média alta que, de iate, leva as duas filhas — Claudia (Mariela Mignot) e a impetuosa caçula Teresa (Consuelo Carreño) — para conhecer uma degradada casa da família junto a um lago, no sul do Chile. No meio do passeio, ele vê três jovens, supostamente pescadores de origem indígena, pedindo ajuda porque o barco está afundando. Mas Ricardo, desconfiado, decide ignorá-los — o que vai gerar conflito com Teresa e desencadear uma espiral de situações tensas.
Nesse microcosmo sobre as águas, Inmersión encena tanto o choque de gerações quanto o preconceito social. Alfredo Castro faz de seu rosto um cenário à parte, onde exibe a arrogância e o medo das elites. A direção de fotografia de Sergio Armstrong (colaborador assíduo do cineasta Pablo Larraín), a edição coassinada por Postiglione e Valeria Hernández e a trilha sonora composta por Paulo Gallo são fundamentais para a criação de um ambiente sinistro e propenso à paranoia — quem sabe à tragédia. Sobre a música, o diretor falou em entrevista à revista estadunidense Variety:
— Paulo Gallo é um nome de que você vai querer lembrar. Sua elegância na composição deu ao filme o peso e a sensação geral que eu almejava. Começamos com moods para adicionar tensão através de sons atmosféricos, mas uma vez feito isso, nos aventuramos a misturar tudo com instrumentos indígenas, porque pensamos que isso aumentaria o clima de perigo, enquanto visualizamos personagens "locais" do lago que pareciam ameaçadores. O que a música acaba fazendo, no entanto, é mover lentamente aqueles tambores e trompas indígenas infernais sobre o tema do pai, e com isso nos ajudou a narrar o modo como ele se torna bestial, até selvagem.