O primeiro tradutor da obra de William Shakespeare para o português é um ilustre desconhecido de grande parte da população — por sorte, o cineasta Jorge Furtado, ao fazer uma pesquisa sobre o grande poeta inglês, deparou com a existência de Lucas Camacho Fernandez. E decidiu que a sua história merecia ser mais conhecida. Assim, passou os últimos 11 anos pesquisando e escrevendo um livro para apresentar a saga do jovem, que viveu há 400 anos.
Em 1607, Fernandez esteve a bordo do navio inglês Red Dragon, e o trabalho do jovem poliglota inglês, com ascendência portuguesa e africana, foi registrado nos diários do capitão William Keeling — que, para afastar seus homens "do ócio, dos jogos ilegais e do sono", propôs a encenação da célebre peça Hamlet na embarcação. Ali, o protagonista da história, um jovem negro de 20 e poucos anos, começou a reescrever o texto em português, para levar para a sua comunidade.
É esta história que Furtado reconta — e também reinventa — em As Aventuras de Lucas Camacho Fernandez (Companhia das Letras, 184 páginas, R$ 64,90 o livro impresso e R$ 39,90 o e-book). A obra, que já está à venda nas livrarias, mescla fato com ficção e conta com ilustrações do premiado quadrinista Marcelo D'Salete. Tudo isso aconteceu devido à curiosidade do cineasta, que se viu fascinado por este pitoresco episódio com a cara de uma de suas inventivas criações audiovisuais.
— Quando descobri o Lucas, fui pesquisar mais para saber quem era esse cara e estudar quem eram as pessoas que de manhã encenavam Hamlet e à tarde caçavam elefantes. Tem essa aparente impossibilidade de que o mesmo ser humano faça as duas coisas. Então, aquele momento da humanidade, a passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o Renascimento, o que Shakespeare representa, isso tudo me interessou. E eu saí à procura desse personagem, o Lucas — conta o escritor.
Profundidade
Mas a história não fica restrita a Lucas Camacho Fernandez. Ritmado e de fácil compreensão, o livro de Furtado ainda aborda episódios como o da paixão do capitão Sir Francis Drake e do poeta William Shakespeare pela mesma mulher, além de apresentar a luta de pessoas escravizadas pela liberdade nas águas do Atlântico, entre os séculos 16 e 17.
Para conseguir contar estas histórias, o autor utiliza relatos de historiadores sobre eventos públicos para colocar o pé na realidade e, na hora de narrar encontros privados, solta a imaginação e insere o seu poder de criar tramas envolventes e com ar de veracidade. O escritor fez isso para remontar 50 anos da vida do seu protagonista: de 1575 a 1625, passando por Londres, África e Brasil.
Imerso na história desde 2011, Furtado conta que o livro foi escrito no período de "descanso" de suas outras atividades — o cineasta, com diversos projetos, revela que este é o seu modus operandi: relaxa pulando de um para o outro.
— Estou escrevendo uma série durante o dia inteiro, mas, quando quero descansar, quando não aguento mais, vou pesquisar sobre o tradutor do Shakespeare. Para mim, é uma maneira de descansar, pensar em outra coisa. Então, estou fazendo sempre várias coisas ao mesmo tempo. Mas levo bastante tempo. Esse livro, que se pode ler em pouco tempo, levou 11 anos para ser escrito — explica o diretor de O Homem que Copiava.
Este trabalho de pesquisa mais a fundo de Furtado, inclusive, em sua visão, o ajudou a abordar o episódio da escravidão de forma responsável, fugindo da exploração sádica da história que é vista em um número considerável de obras. Segundo o autor, em As Aventuras de Lucas Camacho Fernandez, ele coloca a história no ponto de vista dos personagens e, assim, busca entender como cada um deles compreendia aquele momento da humanidade.
— Foram 300 anos de escravidão no Brasil, com assassinatos, estupros, torturas. Como falar sobre isso? É preciso informar, lembrar que isso aconteceu, mas sem ficar explorando isso de uma maneira sádica ou inventando coisas. O que eu procurei fazer neste aspecto do livro foi me basear estritamente em documentos. Então, a crueldade da escravidão e os crimes que eu descrevo no livro são documentados, eu não inventei — explica o autor, ressaltando que deixou pontos que eram excessivamente fortes de fora da trama.
Nas telas
Consumidor voraz de livros desde a infância, Furtado teve a sua formação literária com aventuras como As Viagens de Gulliver, Robinson Crusoé, Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo. E, por isso, desde que decidiu levar a história de Lucas Camacho Fernandez para as páginas de um livro, pretendia que fosse um romance de peripécias, tal qual aqueles que lia algumas décadas atrás.
Se depender de Furtado, o novo livro pode inclusive migrar para uma das mídias pelas quais ele é mais conhecido: o cinema ou a TV. De acordo com o autor, seu romance de peripécias conversa totalmente com o audiovisual.
— Ele é 100% filmável. É pensado como um roteiro mesmo. Então é, teoricamente, de fácil adaptação. A minha ideia era essa desde o começo: fazer um romance muito visual — explica o autor, já deixando uma porta aberta para um novo trabalho.
Quem sabe no período de descanso de outros projetos ele vá adaptando As Aventuras de Lucas Camacho Fernandez. Resta esperar para ver.