A Netflix estreia neste sábado (24) em seu menu o filme mais bonito dos últimos anos: Aftersun (2022), escrito e dirigido pela escocesa Charlotte Wells.
Aftersun recebeu apenas uma indicação ao Oscar de 2023 — a de ator, para Paul Mescal. Mas o filme conquistou o coração de muitos críticos: foi eleito o melhor de 2022 pelo jornal The Guardian e pela revista Sight and Sound, ambas do Reino Unido, e pelo site IndieWire, dos Estados Unidos (além de ter ficado em primeiro lugar na minha lista). Arrebatou o público, pelo menos o da Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre, onde permaneceu mais de três meses em cartaz, mesmo depois de ter estreado no streaming.
Charlotte Wells ganhou o troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA, o DGA, destinado a realizadores estreantes e recebeu da Academia Britânica o prêmio Bafta de cineasta, roteirista ou produtor estreante. Ela fez um pequeno grande filme: em menos de duas horas e com basicamente três personagens, conta uma história com toques autobiográficos sobre a viagem de férias que um pai divorciado e sua filha de 11 anos empreenderam pela Turquia, na década de 1990, quando a Macarena ainda era febre mundial.
Ele é Calum, interpretado por Paul Mescal, protagonista da minissérie Normal People (2020) e coadjuvante em A Filha Perdida (2021). Ela é Sophie, vivida pela novata Frankie Corio. Ambos estão encantadores, e a química entre os dois opera a mágica de acharmos que são pai e filha de verdade.
A terceira personagem importante é a Sophie 20 anos mais velha (Celia Rowlson-Hall). Ela surge no reflexo de uma TV, assistindo às cenas do passeio gravadas por uma filmadora caseira. Sophie também é vista no que parece ser uma festa, onde a luz estroboscópica do ambiente funciona como uma representação do quanto a perturba revisitar suas recordações. Seu olhar melancólico completa o alerta: durante aqueles dias ensolarados na Turquia, em meio aos banhos de piscina e aos mergulhos no mar, às tardes no fliperama e às noites no karaokê, às piadas internas ("Torremolinos!") e às bebidas coloridas, algo aconteceu, algo se perdeu, algo se quebrou.
Mas o quê?, pode se perguntar o espectador diante da doçura com a qual Calum trata a filha e da adoração que ela tem por ele. Aqui está o ponto: agora adulta, Sophie pode — por mais sofrido que seja — vasculhar suas memórias à procura das fissuras que não enxergamos na infância. Daí o título (estranhamente mantido em inglês no Brasil): depois do Sol, vem a noite, estão as sombras.
Daí, também, que a direção de fotografia assinada por Gregory Oke e a edição realizada por Blair McClendon trabalham com texturas e buscam detalhes. Assim como Sophie, na pré-adolescência, faz um esforço silencioso para roçar o seu braço no de um menino enquanto brincam no fliperama ou espia pelo buraco da fechadura a conversa de duas garotas sobre aventuras sexuais, a montagem estende os planos ou muda o ângulo para flagrar um olhar de soslaio de Calum, um suspiro pesaroso, um silêncio revelador.
(TALVEZ HAJA SPOILERS NOS PARÁGRAFOS A SEGUIR.)
Ou nem tão revelador. Um dos trunfos de Aftersun é jamais ceder à tentação de ser explicativo em demasia. Afinal, estamos trafegando nas águas turvas da memória, que nunca é estática, está sempre em transformação, sempre em fabricação. Por um lado, Sophie é uma voyeur de sua infância, desnudando para o público um momento marcante de sua vida; por outro, ela pode estar evitando confrontar certas lembranças, nomear o indizível.
Nesse sentido, foi escolhida a dedo a canção que a guria interpreta no karaokê, Losing my Religion (1991), da banda estadunidense R.E.M., cuja letra diz assim: "Aquele sou eu no canto / Aquele sou eu sob os holofotes / Perdendo minha fé / Tentando te acompanhar / E eu não sei se eu consigo fazer isso (...) / Pensei ter ouvido você rindo / Pensei ter ouvido você cantar / Eu acho que pensei ter visto você tentar / Mas aquilo foi apenas um sonho / Aquilo foi apenas um sonho".
Ainda falando da trilha sonora, é fundamental destacar o uso de Under Pressure (1981), canção composta pela banda Queen com David Bowie. No contexto de Aftersun, seus versos se tornam ainda mais urgentes e pungentes: "Esta é a nossa última dança". Eis uma cena que jamais sairá da memória.