Quase 40 anos atrás, quase 50 artistas estadunidenses se reuniram para gravar uma canção e um videoclipe que se tornaram um sucesso e um ícone: We Are the World. Os bastidores — ora emocionantes, ora engraçados, ora tensos, ora surpreendentes — dessa gravação são reconstituídos em A Noite que Mudou o Pop (The Greatest Night in Pop, 2024), documentário dirigido por Bao Nguyen e disponível na Netflix.
A origem de We Are the World remete à rivalidade entre os Beatles e os Beach Boys. Se na década de 1960 o quarteto de Liverpool e o quinteto californiano disputavam disco a disco para saber qual banda era a mais genial, nos anos 1980 um projeto de britânicos e irlandeses mexeu com os brios de músicos dos Estados Unidos.
No dia 25 de novembro de 1984, juntaram-se em um estúdio de Londres astros como Phil Collins, Sting, George Michael, Boy George, Bono e as turmas do Duran Duran e do Spandau Ballet. Sob o nome Band Aid, eles gravaram a belíssima Do They Know It's Christmas?, escrita pelo irlandês Bob Geldof e pelo escocês Midge Ure com uma causa humanitária: arrecadar dinheiro para combater a fome que devastava a Etiópia, na África. No Reino Unido, o disco vendeu 3 milhões de cópias em menos de um mês, e a música ficou em primeiro lugar nas paradas de rádio durante cinco semanas.
Do outro lado do Oceano Atlântico, o cantor, ator e ativista político Harry Belafonte (1927-2023) ouviu aquilo com um misto de inspiração e indignação. Artistas brancos estavam salvando vidas negras: era a hora de negros salvarem negros. Partiu de Belafonte a ideia do USA for Africa, o projeto beneficente que batizou a constelação de vozes de We Are the World.
Inicialmente, participariam apenas artistas negros, como Lionel Richie e Michael Jackson (1958-2009), que se engajaram para compor em tempo recorde um verdadeiro hino, as divas Dionne Warwick, Diana Ross e Tina Turner, e o maestro Quincy Jones. Mas o produtor e empresário Ken Kragen (1936-2021) entendeu que seria importante abrir o leque para atrair expoentes de gêneros populares predominantemente brancos, como o country, o rock e o folk. Entre os representantes desses segmentos, estavam Kenny Rogers (1938-2020), Bruce Springsteen e Bob Dylan — um dos personagens coadjuvantes mais interessantes do documentário, que tem Richie como condutor e inclui entrevistas com jornalistas, engenheiros de som e operadores de câmera.
Havia dois únicos pré-requisitos aos convidados. O primeiro era manter sigilo sobre o projeto, para não correr risco de o circo da imprensa afugentar participantes. O segundo, dizia um aviso escrito à caneta afixado na porta do estúdio em Los Angeles, era deixar seu ego do lado de fora. Uns nem chegaram a entrar: Prince (1958-2016) não cedeu à insistência dos organizadores, que chegaram a recrutar sua namorada, Sheila E., como tática de convencimento. A justificativa era de que havia muita gente na gravação, mas o mais provável era que o príncipe do pop não queria dividir o mesmo ambiente com o rei — ainda mais com Michael Jackson tendo protagonismo. Outras estrelas sequer foram chamadas: Madonna acabou preterida por Cyndi Lauper. E pelo menos um não vestiu efetivamente a camiseta: imagens inéditas mostram o cantor country Waylon Jennings (1937-2002) abandonando o barco após presenciar uma discussão sobre a proposta de Stevie Wonder de incluir versos em uma língua africana.
Detalhes assim enriquecem A Noite que Mudou o Pop, de modo que revelar mais seria empobrecer a experiência do espectador. Mas preciso dizer que chorei ao escutar Michael Jackson, com a voz ainda potente e cristalina, cantando a capella o refrão de We Are the World, para mostrar, em fitas demo enviadas aos demais artistas, como era a canção.
A gravação das vozes e do vídeo de We Are the World começou por volta das 22h de 28 de janeiro de 1985 e só terminou na manhã seguinte, ao redor das 8h. A música foi lançada mundialmente em 7 de março do mesmo ano, o single vendeu mais de 20 milhões de cópias (é o nono mais comprado na história) e ganhou quatro prêmios Grammy. Ao longo dos anos, contando também merchandising e doações, o projeto USA for Africa arrecadou mais de US$ 80 milhões para ajudar os famintos do continente africano.
Os números talvez não traduzam toda a magia daquela noite. Para ter a dimensão do que foi o We Are the World à época, imagine uma gravação que hoje agrupasse Taylor Swift, Beyoncé, Lady Gaga, Bruno Mars, Justin Timberlake, Miley Cyrus, Jay-Z, Kendrick Lamar, Ariana Grande, Olivia Rodrigo, Dave Grohl (do Foo Fighters), Adam Levine (do Maroon 5), Jon Batiste, Lana Del Rey, Billie Eilish, Chris Stapleton... Ídolos que vendiam horrores de discos e arrastavam multidões para seus shows tiveram a disposição e a modéstia de varar a madrugada para cantar apenas um verso ou participar somente do coro no refrão. Como tinham de preservar o projeto em segredo, não puderam levar seus assessores — estavam por conta própria no estúdio, nas suas versões mais humanas, tendo de lidar sozinhos com seu cansaço, suas inseguranças e eventuais diferenças com os outros cantores. E ainda que um bocado de fama viesse a tiracolo, transparece, nas cenas de arquivo, um desejo genuíno de ajudar, de usar a sua estrela para iluminar vidas mais do que humildes.