Acaba de chegar à Netflix um dos meus filmes preferidos dos últimos anos: Meu Pai (The Father, 2020), que valeu a Anthony Hopkins seu segundo Oscar de ator e ganhou também o prêmio de roteiro adaptado — repetindo a dobradinha do Bafta, o troféu da Academia Britânica. Para mim, figura tranquilamente em uma lista dos 10 melhores longas-metragens lançados de 2020 para cá, ao lado de títulos como Aftersun, Ataque dos Cães, Babilônia, Bela Vingança, Close, O Discípulo, Nada de Novo no Front, A Noite do Fogo, A Pior Pessoa do Mundo, Quo Vadis, Aida? e TÁR.
À primeira vista, a obra pode causar uma sensação de déjà vu: mais um filme sobre como a perda da memória, a demência, o Alzheimer etc afetam os relacionamentos familiares e/ou amorosos, depois de O Filho da Noiva (2001), Iris (2002), Diário de uma Paixão (2004), Longe Dela (2006), A Família Savage (2007), Para Sempre Alice (2015), A Viagem de meu Pai (2015), Viver Duas Vezes (2019), Supernova (2020)...
À primeira vista, o protagonista da história, o octogenário Anthony (interpretado pelo britânico Hopkins), acha que sua filha, Anne (Olivia Colman), está o abandonando em Londres para ir morar em Paris com um homem que conheceu há pouco tempo.
À primeira vista, o espectador acha que entende o que está acontecendo e aonde isso vai dar. Mas daí Anthony surpreende-se com a presença de um sujeito lendo o jornal na sala de seu belo apartamento, e depois o personagem não reconhece mais a filha — nem nós reconhecemos, pois é a atriz Olivia Williams quem surge como Anne. É então que Meu Pai começa a se mostrar um filme sobre memória, demência, Alzheimer etc diferente de todos os que já havíamos visto, é então que Meu Pai começa a se tornar inesquecível, é então que Meu Pai começa a justificar as seis indicações ao Oscar que recebeu.
Disponível também nas plataformas Belas Artes à La Carte e Paramount+, o primeiro longa-metragem dirigido pelo romancista e dramaturgo francês Florian Zeller (que depois decepcionaria com Meu Filho) concorreu também às estatuetas de melhor filme, roteiro adaptado, atriz coadjuvante (Olivia Colman), edição e design de produção. De Hopkins, hoje com 85 anos, e Colman, 49, nem há muito o que falar. Ambos estão brilhantes como de costume, mas fugindo de suas personas dramáticas.
Ele, que vencera antes por O Silêncio dos Inocentes (1991) e competira ao Oscar de melhor ator por Vestígios do Dia (1993) e Nixon (1995), além de disputar como coadjuvante por Amistad (1997) e Dois Papas (2019), exibe uma vulnerabilidade poucas vezes demonstrada em sua carreira, marcada por tipos ora impassíveis, estoicos, ora donos de um charme perverso ou malicioso. Aqui Sir Anthony se permite até dançar, em um esforço para provar que ainda é capaz de gerir a si mesmo, e chorar como uma criança, em uma rendição àquilo que vem consumindo sua mente.
Ela, que recebeu o Oscar de melhor atriz por A Favorita (2018) e o Emmy e o Globo de Ouro pelo seriado The Crown, e depois disputou o prêmio da Academia de Hollywood por A Filha Perdida (2021), literalmente despiu-se das roupas e da verve da realeza britânica (e tampouco veste o sarcasmo da madrasta que encarnou na série Fleabag): sua Anne é uma pessoa comum, uma filha acuada pela deterioração da memória paterna — o que vem acompanhada de rompantes de mau humor para com a cuidadora da vez — e confrontada pela difícil decisão que acomete muitas famílias: chegou a hora de internar o pai em uma clínica?
O trabalho de Hopkins e Colman — dois atores que sabem manejar as emoções e saborear as palavras — é beneficiado pela origem teatral de Meu Pai. Contudo, em companhia do roteirista inglês Christopher Hampton, oscarizado por Ligações Perigosas (1988) e concorrente por Desejo e Reparação (2007), Florian Zeller verteu seu premiado espetáculo Le Père (2012) pensando em extrair o máximo dos recursos cinematográficos. Da iluminação e dos movimentos de câmera do diretor de fotografia Ben Smithard à edição assinada por Yorgos Lamprinos, passando pelo design de produção concebido por Peter Francis e Cathy Featherstone, a excelência técnica está a serviço de um dos objetivos declarados pelo diretor em entrevista à BBC:
— O que eu queria fazer não era contar a história por fora, mas por dentro, e colocar o público em uma posição ativa, como se estivesse na cabeça do personagem principal. Eu queria que Meu Pai fosse um pouco mais do que uma história: uma experiência, como se fosse você quem perdesse o rumo.
Essa é uma diferença em relação a títulos como os citados no início deste texto, nos quais assistimos ao processo de derrocada mental geralmente pelos olhos de outros personagens, como os maridos da protagonista de Longe Dela e de Iris Murdoch (1919-1999) na cinebiografia da escritora e filósofa irlandesa. (Daí o único senão do filme de Zeller, que na verdade deve ser debitado na conta da distribuidora brasileira, a Califórnia Filmes: o título nacional, Meu Pai, sugere um maior protagonismo de Anne.) Dentro da proposta do realizador, tanto quanto o roteiro e as interpretações, o cenário e a montagem desempenham um papel importante. A escolha, a ordenação e o ritmo das cenas filmadas ajudam a transmitir a sensação de que Anthony está sempre pisando em ovos no terreno da memória - há sempre à espreita uma presença física, humana ou inanimada, que o desestabiliza. A decoração do apartamento, por sua vez, simula os lapsos e a desorientação, como disse Florian Zeller à BBC:
— No começo, você reconhece o apartamento de Anthony, o espaço, as bugigangas, os móveis. Passo a passo, sempre em segundo plano, há pequenas mudanças, pequenas metamorfoses no conjunto, e você nunca sabe exatamente o que aconteceu, mas algo aconteceu, então você tem a sensação de que está no mesmo lugar, mas também em outro lugar.
A carpintaria de Meu Pai não seria muito útil se não trouxesse no centro uma história profundamente humana e universal. Zeller, que se inspirou na vivência com a avó que o criou, retrata um drama que atinge mais de 5% da população acima dos 60 anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Estima-se em 35 milhões o número de pacientes com o tipo mais comum de demência, o Alzheimer — 1,2 milhão deles moram no Brasil.
Calculem quantos familiares estão, neste momento, lidando com essa doença sem cura (os melhores tratamentos apenas conseguem retardar seu avanço), que provoca a perda de funções cognitivas: memória, orientação, atenção e linguagem. Se você não faz parte desse contingente, veja o filme e coloque-se no lugar de Anne, com sua confusão de sentimentos (o amor incondicional pelo pai, a angústia diante de um longo, doloroso e inevitável processo de despedida, o desejo íntimo e até a pressão alheia para que cuide da própria vida); coloque-se no lugar de Anthony: imagine o que é ser traído pela própria mente a cada instante, a ponto de já nem saber onde estamos, já nem saber quem somos.