O título escolhido pelos argentinos para concorrer a uma vaga no Oscar de melhor filme internacional tem pelo menos três trunfos. Em cartaz no Amazon Prime Video desde sexta-feira (21), Argentina, 1985 (2022), de Santiago Mitre, aborda os horrores cometidos durante a ditadura militar, entre 1976 e 1983, a exemplo de A História Oficial (1985), primeira produção do país a conquistar a estatueta dourada — um feito que o Brasil ainda persegue. Na obra dirigida por Luis Puenzo (disponível na Netflix), uma professora interpretada por Norma Aleandro começa a desconfiar das relações de seu marido com a máquina repressora do regime e passa a tentar descobrir quem é a mãe biológica de sua filha adotada.
O protagonista de Argentina, 1985 é Ricardo Darín, ator que esteve à frente do elenco de O Segredo dos seus Olhos (2009, no Amazon Prime Video e na HBO Max), que também venceu o Oscar e que também enfoca os tempos ditatoriais quando o personagem principal, um oficial de justiça aposentado, resolve escrever um livro sobre um crime que investigou 25 anos atrás, na década de 1970. Darín atuou em outros dois títulos da Argentina indicados ao prêmio: O Filho da Noiva (2001) e Relatos Selvagens (2014).
Por fim, Argentina, 1985 é um drama de tribunal, subgênero bastante apreciado pela Academia de Hollywood — vide os triunfos ou as indicações de filmes como Doze Homens e uma Sentença (1957), Testemunha de Acusação (1957), Anatomia de um Crime (1959), Julgamento em Nuremberg (1961), O Sol É para Todos (1962), Kramer vs. Kramer (1979), Justiça para Todos (1979), O Veredito (1982), Questão de Honra (1992), Filadélfia (1993), Erin Brockovich (2000), Ponte dos Espiões (2015) e Os 7 de Chicago (2020).
É com Julgamento em Nuremberg que Argentina, 1985 guarda algum parentesco. Afinal, o filme dirigido pelo argentino Santiago Mitre — realizador de Paulina (2015) e A Cordilheira (2017) — e ganhador do prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema (Fipresci) no Festival de Veneza apresenta uma versão ficcionalizada do maior julgamento civil de crimes cometidos pelo Estado desde os tribunais organizados pelos Aliados entre 1945 e 1946, depois da Segunda Guerra Mundial, nos quais lideranças nazistas foram processadas. É outro feito alcançado pelos argentinos mas não pelo Brasil, onde a ditadura vigorou de 1964 a 1985. Aqui, a Lei da Anistia, estabelecida em 1979, impede a punição tanto de ativistas quanto de militares.
Com cerca de 140 minutos, a trama se passa entre meados de 1984 e o dia 18 de setembro de 1985, durante o governo de Raúl Alfonsín (1927-2009), o primeiro presidente eleito após a redemocratização. Ricardo Darín encarna Julio César Strassera (1933-2015), promotor público encarregado de colocar no banco dos réus os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que adotaram o sequestro, a tortura, o estupro, a morte e a ocultação de cadáver como políticas de Estado depois do golpe que derrubou da Casa Rosada Isabel Perón (hoje com 91 anos). Entre os acusados, estão o tenente-general Jorge Rafael Videla, o almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro-general Orlando Ramón Agosti. Estima-se em 30 mil o número de cidadãos desaparecidos.
Apesar do tema ser pesado, Argentina, 1985 permite-se, sobretudo na sua metade inicial, uma leveza e até passagens engraçadas. Talvez isso não fosse possível sem a presença de Darín, um ator que consegue transitar, no mesmo papel, do cômico para o dramático, e vice-versa. Seu Strassera é um tipo que surge aos olhos do espectador disposto a evitar uma reunião com o chefe. Mostra-se descrente quanto à missão que vai receber, ainda mais sem o apoio de muitas instituições, alguns setores da sociedade e membros do próprio governo Alfonsín. Havia inclusive quem culpasse as vítimas.
Mas está decidido: Strassera terá de tentar condenar os ditadores argentinos — "Quem vai prendê-los, os Astros do Ringue?", ironiza.
Para piorar o quadro, ele precisa correr contra o tempo e, diante da escassez de colegas de geração que não sejam fascistas, terá a seu lado uma equipe de jovens inexperientes — a começar por seu assistente, Luis Moreno Ocampo, vivido por Peter Lanzani, de O Clã (2015). A sequência de recrutamento desses advogados também é humorística, mas o filme flerta com o suspense quando a família de Strassera sofre ameaças, e adota um tom mais dramático à medida que sobreviventes da ditadura e parentes de vítimas dão dolorosos depoimentos no tribunal.
Coautor do roteiro, Santiago Mitre resolveu fazer de Argentina, 1985 um filme simplificado na estrutura, formulaico nas sequências de tribunal (como quando insere cenas reais) e deveras didático nos diálogos, ainda que a montagem lance mão de soluções que dão dinamismo ao andamento da história — não se sente as duas horas e 20 minutos de duração. Em entrevista ao Estadão, o cineasta de 41 anos justificou suas escolhas:
— O longa precisava conversar com um público mais amplo, não só na Argentina, como no mundo todo. E eu estou preocupado com os tempos em que vivemos. Vejo muitos jovens que não sabem nada da ditadura, desse julgamento.
Daí que, no arrepiante discurso de conclusão da acusação, Strassera afirma que "nos cabe estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória". Mas o próprio filme esquece — ou no mínimo omite: Argentina, 1985 faz parecer que o julgamento das Juntas Militares foi algo definitivo. Porém, nos anos seguintes, por pressão das Forças Armadas, foram promulgadas leis que restringiam a questão da culpabilidade — a de Ponto Final, em 1986, e a de Obediência Devida, em 1987. Em 1990, o sucessor de Alfonsín na presidência, o peronista conservador Carlos Menem (1930-2021), que havia ficado preso por cinco anos na época da ditadura, concedeu indultos a Videla, Massera e outros líderes. Esses perdões acabariam anulados nos anos 2000, levando Videla de volta ao banco dos réus e, posteriormente, à prisão, onde morreu em 17 de maio de 2013, aos 87 anos. Antes, em entrevistas ao jornalista argentino Ceferino Reato, o presidente do país entre 1976 e 1981 a admitiu que foi o responsável direto por milhares de mortes e desaparecimentos: "Eu sabia tudo o que estava acontecendo e autorizei tudo, tenho peso na alma, mas não estou arrependido de nada".