No Oscar 2024, Pobres Criaturas (Poor Things) é como TÁR na premiação de 2023 da Academia de Hollywood. Novamente, temos um candidato a melhor filme que tem a direção de um homem (Yorgos Lanthimos), concorrente à estatueta de sua categoria, e o protagonismo de uma mulher, em um papel pelo qual sua atriz (Emma Stone, também produtora) é uma das favoritas. Novamente, temos um longa-metragem que foge do convencional na maneira como conta a história, o que demanda bastante trabalho do diretor de fotografia (Robbie Ryan) e do editor (Yorgos Mavropsaridis), ambos também indicados. Novamente, temos uma obra capaz de gerar um debate intenso por causa dos temas que aborda e capaz de provocar interpretações conflitantes.
Em cartaz a partir desta quinta-feira (1º) nos cinemas de Porto Alegre, Pobres Criaturas compete em 11 categorias do Oscar no total. Além das já citadas, disputa os troféus de ator coadjuvante (Mark Ruffalo), roteiro adaptado (Tony McNamara), design de produção (James Price, Shona Heath e Zsuzsa Mihalek), figurinos (um deslumbrante trabalho de Holly Waddington: repare nas formas e nas cores das roupas vestidas pela protagonista), maquiagem e cabelos (Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston) e música original (Jerskin Fendrix). No Bafta, da Academia Britânica, soma 11 indicações. Nos EUA, também está na briga pelos prêmios da Associação dos Produtores, do Sindicato dos Diretores e do Sindicato dos Atores (com Emma Stone e Willem Dafoe, outro coadjuvante). O currículo inclui o Leão de Ouro no Festival de Veneza e dois Globos de Ouro no segmento de comédia ou musical (filme e atriz).
Grego de 50 anos, Yorgos Lanthimos já havia sido indicado três vezes ao Oscar — primeiro como roteirista de O Lagosta (2016), depois como diretor e produtor de A Favorita (2018). E um de seus primeiros longas, Dente Canino (2009), concorreu ao prêmio internacional. No Festival de Cannes, ele ganhou a mostra Um Certo Olhar por Dente Canino e foi laureado pelo roteiro de O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017). Em Veneza, levou ainda a Osella de Ouro pelo script de Alpes (2011) e um troféu especial do júri por A Favorita.
Pobres Criaturas reúne características dos títulos anteriores. Temos uma distopia — ambientada numa Era Vitoriana (1837-1901) no estilo steampunk, em que dirigíveis cobrem os céus e cientistas fundem porcos com galinhas. Temos a combinação do absurdo com o chocante, do pessimismo com um senso de humor. Temos a crítica social e a ridicularização das figuras de poder — no caso, o patriarcado. Temos personagens movidos por seus impulsos sexuais (e temos o despudor nas — incontáveis — cenas de sexo) e por um desejo de ver como é a vida lá fora. Temos o uso de lente olho de peixe, tão angular que deixa as imagens esféricas e distorcidas, aumentando tanto a profundidade de campo — o que faz sentido em uma história sobre uma protagonista que está descobrindo o mundo — quanto o clima de estranheza. E temos a fabulosa Emma Stone, que disputou o Oscar de coadjuvante por A Favorita e Birdman (2014) e venceu como melhor atriz por La La Land (2016).
Baseado em romance do britânico Alasdair Gray publicado em 1992 (e ainda inédito no Brasil), Pobres Criaturas é uma releitura de Frankenstein (1818), o livro de Mary Shelley que se tornou um clássico da ficção científica e do horror ao abordar os limites éticos dos avanços da ciência. Há também um quê de Cândido (1759), a debochada obra de Voltaire sobre um jovem ingênuo e otimista que passa a testemunhar e vivenciar as dificuldades do mundo.
A primeira parte do filme se passa em Londres e é em preto e branco. Em mais uma ótima atuação, Willem Dafoe interpreta um excêntrico cientista chamado Godwin Baxter (o prenome do personagem vem do sobrenome do pai de Mary Shelley). Vítima de sádicos experimentos paternos — vide o rosto retalhado, os problemas digestivos, a impotência —, virou um cirurgião que faz jus ao apelido God (Deus, em inglês) ao devolver à vida uma jovem suicida, a quem rebatiza como Bella Baxter.
Encarnada com talento e destemor por Emma Stone, ela personifica uma (muito abjeta) fantasia sexual masculina: tem o corpo de uma mulher e o cérebro de uma criança. Daí que a flagramos quebrando pratos, fazendo xixi no meio da sala, balbuciando palavras.
— Que retardada bonita! — exclama o estudante de Medicina Max McCandles (papel do humorista Ramy Youssef), que se torna assistente de Godwin e acaba encorajado a se casar com Bella.
Ela aceita o pedido de noivado, mas então surge em cena o advogado cafajeste e hedonista Duncan Weddeburn (Mark Ruffalo, deliciosa e lascivamente engraçado). Duncan aparece no momento em que Bella, com a mente já mais desenvolvida, está explorando sua sexualidade — a mudança do preto e branco para o colorido assinala o seu desabrochar. A protagonista fica fascinada pelos "saltos furiosos" (o orgasmo) das transas com Duncan, então, topa fugir com ele em uma viagem de navio que inclui paradas em Lisboa, Alexandria (no Egito) e Paris.
Nessa jornada, Bella conhecerá personagens interpretados pela octogenária Hanna Schygulla, pelo comediante Jerrod Carmichael e pela camaleônica Kathryn Hunter (que fez as três bruxas em A Tragédia de Macbeth). Com cada um deles, aprenderá mais sobre si mesma e sobre o mundo. Fica particularmente abalada ao deparar com a miséria, o que vai despertar ideais socialistas.
A todo tempo, Duncan representa os homens que querem controlar as mulheres. Ora repreende Bella por sua libido (vai contra "a polidez da sociedade"), ora se desespera quando ela passa a ter consciência moral e social. É uma figura patética e covarde, que jamais pede nossa empatia, só nosso riso ou nosso desprezo.
O sexo é constante na trajetória de Bella, seja por vontade própria, seja como meio de subsistência. O modo como Pobres Criaturas retrata as experiências sexuais da protagonista e sua incursão pela prostituição suscita reações contraditórias. "É uma obra-prima feminista ou uma ofensiva fantasia sexual masculina?", pergunta o jornal britânico The Guardian em uma publicação que congrega as opiniões de 14 jornalistas e críticos.
Para a colunista Zoe Williams, o filme "pede que você imagine uma sexualidade feminina que não tenha sido dolorosamente formada pela sociedade e seu arsenal de regras explícitas, expectativas tácitas, violência aberta e controle dissimulado da vergonha". Redatora do Guardian, Imogen Tilden lembra que, sim, este é um filme feito por homens e com uma heroína literalmente criada por um homem, e "o corpo maduro e a mente infantil de Bella são o próprio modelo da fantasia masculina, assim como seu prazer e apetite por sexo". Mas, por outro lado, os personagens masculinos jamais conseguem controlar a protagonista, e "para Bella a masturbação não traz o peso da culpa e da auto-aversão inerentes a uma cultura que ensina às meninas que seus corpos ou prazer sexual são vergonhosos. Bella gosta de sexo. (...) Por que ela não pode usar seu corpo como deseja?". Tilden acrescenta que, à medida que Bella atinge a maturidade mental, é a sua mente, não o seu corpo, que ela quer usar.
Já Samira Ahmed, apresentadora do programa Front Row na BBC Radio 4 e curadora do Centre for Women's Justice, critica a romantização da prostituição, aponta o desejo insaciável de Bella como um dos mais antigos mitos sobre abusadores e define Pobres Criaturas como "a fantasia de um homem heterossexual de meia-idade sobre a ninfomania, com a mais frágil cobertura de sátira". Com ironia, a jornalista Bidisha Mamata faz coro: "As 'aventuras' de Bella são 98% de sexo heterossexual com penetração e 2% de conversa. Fiquei particularmente grata por sua incursão na vida de bordel, porque os homens que escrevem histórias não conseguem imaginar nenhum trabalho para as mulheres, exceto a prostituição, e então eles falam sobre como tudo é tão filosoficamente interessante, e acrescentam insulto à injúria, colocando esses pensamentos masturbatórios e autojustificáveis na boca de mulheres fictícias. Mas o que eu saberia? Assim como Bella no início do filme, eu sou apenas uma idiota estúpida, e não tenho a combinação única de carnalidade intensa e beleza virginal de Bella para compensar".