Estreia neste fim de semana no canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay TÁR (2022), que concorreu em seis categorias do Oscar: melhor filme, direção (Todd Field), atriz (Cate Blanchett), roteiro original (assinado pelo próprio cineasta), fotografia (o alemão Florian Hoffmeister) e edição (a austríaca Monika Willi, habitual colaborada de Michael Haneke). Não ganhou nada, o que foi um pecado, especialmente no caso de Blanchett, que pelo menos conquistou a Copa Volpi, no Festival de Veneza do ano passado, o Bafta (da Academia Britânica), o Critics' Choice (dos críticos de rádio, TV e internet dos EUA e do Canadá), o Globo de Ouro (da associação de imprensa estrangeira) e o troféu da criteriosa National Society of Film Critics.
O diretor Todd Field é um personagem à parte. Primeiro porque fazia 16 anos que este californiano de 59 não lançava um filme. Entre 2008 e 2019, houve rumores, notícias e até anúncios de uma série de projetos, como um sobre a Revolução Mexicana (ora com Leonardo DiCaprio, ora com Christian Bale e, por fim, com Daniel Craig), outro sobre uma liga de beisebol dos anos 1970, adaptações de pesos-pesados da literatura dos Estados Unidos, como Cormac McCarthy, Joan Didion e Jonathan Franzen, e o drama de guerra America's Last Prisoner of War, inspirado no caso real de um soldado, Bowe Bergdahl, sequestrado pelo Talibã e mantido preso de 2009 a 2014 no Afeganistão. Nada disso vingou.
O segundo motivo que joga holofotes em Field é sua invejável assiduidade no Oscar. Ele só dirigiu três longas (e chegou a declarar que TÁR pode ser seu último), e todos disputaram o prêmio da Academia de Hollywood. Sua estreia, Entre Quatro Paredes (2001), foi indicada em cinco categorias: melhor filme, roteiro adaptado (pelo próprio cineasta a partir de um conto do escritor Andre Dubus), ator (Tom Wilkinson), atriz (Sissy Spacek) e atriz coadjuvante (Marisa Tomei). Depois, Pecados Íntimos (2006) concorreu às estatuetas de atriz (Kate Winslet), ator coadjuvante (Jackie Earle Haley) e roteiro adaptado, assinado pelo diretor na companhia de Tom Perrota, autor do romance em que o filme é baseado, Criancinhas (as Little Children do título em inglês).
Naturalmente, o retorno de Field geraria burburinho no âmbito cinematográfico, mas TÁR provocou uma quantidade desproporcional de conversas para um fracasso de bilheteria (custou US$ 35 milhões, somando os gastos com marketing, e arrecadou US$ 29 milhões). "É possível que o discurso em torno do filme seja tão interessante quanto o próprio filme", escreveu Charlotte Higgins, a redatora-chefe de Cultura do jornal britânico The Guardian, antes de resumir várias interpretações conflitantes de TÁR: "Que é uma deturpação vergonhosa do campo da música clássica; que tudo é muito real; que tudo é muito surreal; que carrega um peso intelectual que é raro no cinema; que não é tão esperto quanto pensa; que não se trata de regência, mas sim de poder; que não se trata de poder, mas sim de narcisismo; que se trata de um choque de ética entre as gerações; que é sobre o feminismo da terceira onda; que sua protagonista, em toda a sua antipatia, é arrebatadoramente complexa; que sua protagonista é irremediavelmente odiosa; que é uma anatomização fascinante da cultura do cancelamento; que na verdade é um filme retrógrado que tem um objetivo amargo na política identitária".
Pode-se acrescentar outros temas e outras queixas levantados por TÁR, como a possibilidade ou não de se separar o artista da obra, sobretudo à luz dos debates sobre diversidade de gênero e representatividade étnica; as semelhanças marcantes, nos dados biográficos, e diferenças gritantes, na conduta pessoal, entre a personagem central e a maestra Marin Alsop; e o fato de que essa protagonista é uma predadora sexual, que usa a sua posição hierárquica e seu status artístico para levar para a cama, enquanto aqui, na vida real, a grande maioria dos que se valem disso para cometer abuso são homens. "Depois", prossegue Higgins, "há um extenso debate online dedicado a decodificar seu misterioso ato final. Há algo empolgante em um filme que é tão aberto, que demanda tanta discussão".
O título toma emprestado o sobrenome da personagem encarnada por Cate Blanchett, Lydia Tár. Regente da Filarmônica de Berlim e uma das raras artistas EGOT (ganhou um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony, o principal prêmio do teatro), ela é a maior estrela da música erudita contemporânea — e sabe disso: sua arrogância é um terreno vasto para Cate Blanchett desfilar seu talento dramático.
Quando a conhecemos, a protagonista está nos bastidores do New Yorker Festival, onde será entrevistada pelo crítico Adam Gopnik, interpretado pelo próprio ensaísta da revista nova-iorquina. Naqueles instantes enquanto Lydia aguarda ser chamada ao palco, a atriz australiana começa a exibir as contradições da sua personagem. Está ali a presunção, mas também se vislumbra uma insuspeitada insegurança. Estão ali a postura rigorosa e o olhar frio, mas também se percebe um pendor à impulsividade.
A maestra está lançando um novo livro, Tár on Tár, e tem o projeto de gravar a desafiadora 5ª Sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), completando o ciclo de um dos maiores compositores do período romântico. Antes de a conversa virar um longo monólogo sobre o papel do tempo na música, Gopnik diz que não pôde deixar de observar Lydia "se encolhendo" enquanto ele lia sua apresentação e pergunta se foi por ter esquecido alguma façanha ou se foi por ela ter autoconsciência das incríveis e variadas coisas já conquistadas.
Puro jogo de cena: um pouco antes, vimos a assistente da regente, Francesca (interpretada pela francesa Noémie Merlant, de Retrato de uma Jovem em Chamas), recitar, silenciosamente, todas as palavras que estão sendo ditas por Gopnik. Lydia Tár é uma mulher no controle absoluto de tudo e de todos, o que inclui sua esposa, Sharon (a alemã Nina Hoss, das séries Homeland e Jack Ryan), primeira violinista da orquestra e mãe de sua filha, Petra, e o banqueiro profissional e maestro amador Eliot Kaplan (o britânico Mark Strong), com quem ela criou uma fundação de incentivo a mulheres que querem reger orquestras. Mas o castelo de Lydia não tarda a começar a ruir, implodido por suas próprias vontades e decisões.
Para mostrar a jornada de glória e autodestruição da protagonista, Todd Field evita os típicos caminhos hollywoodianos. O diretor pega desvios e, em vez de oferecer cenas à la cartão postal, em que tudo está dado, nos convida a explorar detalhes para construir o quadro completo — repare em uma certa bolsa vermelha, por exemplo. Lydia Tár é nossa guia (Cate Blanchett está presente na grande maioria dos 158 minutos de duração), mas essa é uma guia não muito confiável e que nem sempre conduz o nosso olhar — volta e meia, é como se o espectador estivesse a espiando, flagrando um momento de intimidade, de vulnerabilidade, de crueldade.