Trinta e cinco anos atrás, Martin Scorsese, o diretor do recente Assassinos da Lua das Flores, viveu um inferno na Terra. Tudo por conta de A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988), filme que, atualmente, está disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube.
As notícias publicadas em ZH entre agosto e dezembro de 1988 (e gentilmente coletadas pela colega Debora Cabrera Spolavori) ilustram o tamanho da polêmica de proporções bíblicas despertada por A Última Tentação de Cristo. Que, no Oscar, só concorreu ao prêmio de melhor direção, a despeito da comovente atuação de Willem Dafoe como Jesus, da belíssima fotografia de Michael Ballhaus, da hipnótica trilha sonora composta por Peter Gabriel e das qualidades do longa-metragem em si, estrelado também por Barbara Hershey (Maria Madalena), Harvey Keitel (Judas Iscariotes) e David Bowie (Pôncio Pilatos). Gabriel e Hershey foram indicados ao Globo de Ouro de, respectivamente. música original e de atriz coadjuvante.
Em 11/8 e 12/8, as manchetes eram "Madre Teresa contra A Última Tentação de Cristo", "Para bispos, este filme é ofensa moral" e "A revolta dos religiosos" — esta vinha acompanhada de foto em que, em frente a cinema nos EUA, manifestantes carregavam cruzes e cartazes com as palavras "blasfêmia" e "boicote". Os detratores ficaram enfurecidos com o retrato humanizado de Jesus Cristo, que, durante a crucificação, alucina e imagina sua vida como um homem comum, casado primeiro com a prostituta Maria Madalena, depois com as irmãs de Lázaro, que lhes dá muitos filhos.
No dia 8/9, na reprodução de uma entrevista, Martin Scorsese defende sua obra de duas horas e 44 minutos como "um ato de fé" e sem qualquer irreverência; é a história de um Jesus "cheio de dúvidas" — será que ele é mesmo o filho de Deus e o Messias? _, um filme sobre "a luta entre a carne e o espírito, a violência e o amor", tema recorrente em sua filmografia.
Em 1°/10, o cardeal Ratzinger, futuro Papa, reclama da "falsidade histórica", desprezando o fato de que o roteiro assinado por Paul Schrader se baseia em um romance, do escritor grego Nikos Kazantzakis. Em 11/10, noticia-se um incêndio criminoso em um cinema da França; em 19/10, a proibição do filme por Israel; em 11/11, a retirada da programação do Festival do Rio por causa de ameaças assumidas por um "Grupo Terrorista em Defesa da Religião Católica"; em 16/11, véspera da estreia no Brasil, a gerência dos cines Baltimore e São João, em Porto Alegre, informa que haverá soldados da Brigada Militar e seguranças civis para garantir a segurança das sessões; em 19/11, registra-se que salas de Brasília, Rio, São Paulo, Ribeirão Preto e Belo Horizonte deixaram de exibir o título.
Os ataques também continham um pouco de humor involuntário. Matéria do dia 5 de novembro conta da petição da Sociedade Beneficente de Estudos da Filosofia no Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo a entidade, Scorsese pretendia "desmoralizar o cristianismo", e A Última Tentação de Cristo era "uma afrontosa discriminação que deve ser refutada com veemência, equivalente à que poderia ser manifestada diante de um filme que focalizasse o líder negro Martin Luther King como um tipo covarde, mentiroso, e casado homossexualmente com o pugilista Muhammad Ali".
Também não faltaram visões ponderadas e elogios nas páginas de ZH. Em 17/11, numa reportagem feita junto aos frequentadores dos cinemas Baltimore e São João, em Porto Alegre, o militar Pedro Cardoso, 56 anos, deu um exemplo de sensatez: "A Igreja Católica tem todo o direito de recomendar a seus fiéis que não assistam a determinados filmes. E eu tenho todo o direito de aceitar ou não tal recomendação. Claro que vou ver A Última Tentação de Cristo. Como posso ter uma opinião sobre esse filme se não for conhecê-lo?".
No dia 25/11, o lendário crítico Goida escreveu: "Desde o início, Jesus luta contra a ideia cômoda de ser apenas um homem comum. Preso na cruz, entre a dor e o delírio, perto da morte, por que não um último sonho, a ilusão da felicidade terrena e a descoberta da mulher? Não há desrespeito, muito menos sensacionalismo. (...) O apelo da carne é forte, mas a alma vence. Cumpre-se o destino e fica tudo consumado. O Cristo que permanecerá é o da cruz, o do sacrifício, não o que poderia ter fugido dela. (...) Só os hipócritas, os fanáticos ou os donos da verdade não serão tocados pela beleza profunda desta obra".
Por fim, em artigo publicado em 10/12, o escritor Janer Cristaldo lembrou: "Todo Index Prohibitorium é contraproducente, só serve para vender o que pretende proibir".