Perto de completar 81 anos, no dia 17 de novembro, Martin Scorsese fez uma espécie de testamento cinematográfico em Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, 2023), que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (19). Seu 26º longa-metragem de ficção traz praticamente todas as marcas do grande cineasta estadunidense, que, com esse título, se credencia para concorrer mais uma vez ao Oscar — ele soma 14 indicações, como diretor, produtor ou roteirista, mas só ganhou da Academia de Hollywood a estatueta de melhor direção, por Os Infiltrados (2006).
Algumas dessas marcas já estão impressas nos créditos. Pela primeira vez em um longa-metragem, depois do curta The Audition (2015), Scorsese reúne os dois atores com quem mais trabalhou. É a 10ª colaboração do também octogenário Robert De Niro, que há cinco décadas, com Caminhos Perigosos (1973), deu início à longeva parceria que rendeu um Oscar — por Touro Indomável (1980) — e mais duas indicações: por Taxi Driver (1976) e por Cabo do Medo (1991). E é a sexta de Leonardo DiCaprio, 48 anos, que estreou a parceria em Gangues de Nova York (2002) e, sob o comando do diretor, concorreu duas vezes à estatueta dourada da Academia de Hollywood — por O Aviador (2004) e por O Lobo de Wall Street (2013). (Não é a primeira vez dos dois juntos: em 1993, contracenaram em O Despertar de um Homem, de Michael Caton-Jones, como padrasto e enteado. Agora, fazem tio e sobrinho.)
Há outros nomes recorrentes na equipe. Pela quarta vez, Rodrigo Prieto assina a direção de fotografia, e a edição, é claro, ficou a cargo de Thelma Schoonmaker, responsável pelo primeiro filme de Scorsese, Quem Bate à Minha Porta? (1967), e sua montadora oficial desde Touro Indomável. Aos 83 anos, ela exibe frescor e fluidez, dando ritmo às três horas e 26 minutos — a duração longa também já virou marca scorsesiana, vide O Irlandês (210 minutos), O Lobo de Wall Street (180), Cassino (178), O Aviador (169)... Já a música foi composta pelo guitarrista Robbie Robertson, morto em 9 de agosto, aos 80 anos, personagem do cineasta no documentário O Último Concerto de Rock (1978), sobre a The Band, e autor das trilhas de A Cor do Dinheiro (1986) e O Irlandês (2019), além de ter sido produtor musical em vários títulos.
O roteirista Eric Roth ainda não havia trabalhado com Scorsese, mas, como de costume na filmografia do cineasta, o script se baseia em uma história real de origem literária — o homônimo livro-reportagem de David Grann (o mesmo de Z: A Cidade Perdida). A exemplo de Os Bons Companheiros (1989), Cassino (1995), Gangues de Nova York (2002) e O Irlandês (2019), trata-se de um policial que permite traçar um painel histórico dos Estados Unidos e examinar a violência endêmica de sua sociedade.
Em foco, desta vez, estão a ganância e o racismo que levaram homens brancos a exterminar indígenas Osage, no Estado do Oklahoma, na década de 1920 — a investigação das mortes ajudou a consolidar o FBI, a polícia federal estadunidense, que tinha surgido naqueles tempos. Esse povo nativo tinha sido expulso de suas terras para uma região rochosa e infértil, mas eles acabaram descobrindo petróleo (como Scorsese reconstitui com seu característico uso da câmera lenta) e enriquecendo (como o diretor mostra mimetizando os cinejornais daquela época — o amor pelo próprio ofício é outra marca). Os Osage ousaram prosperar, despertando o ódio e a cobiça, como aconteceu com a rica comunidade negra de Tulsa, no mesmo Oklahoma, massacrada em 1921 por uma multidão branca (esse episódio também é referido em Assassinos da Lua das Flores).
Leonardo DiCaprio interpreta Ernest Burkhardt, ex-soldado com olhar assustado, dentes rotos e algo estúpido que é acolhido pelo tio, William Hale (De Niro, em uma atuação monumental), o Rei, um sujeito de duas caras: posa de amigo dos Osage, mas na verdade só está interessado em se apossar da sua fortuna. Ernest vai se casar com uma indígena, Mollie (Lily Gladstone, o coração do filme), mas, como os típicos personagens de Scorsese, viverá sob o tormento, sublinhado pela música de Robbie Robertson. Tem o corpo e a alma cindidos — "Quase amo dinheiro tanto quanto amo minha mulher", admite.
Não há mistério sobre para onde a trama vai, e inclusive existe um pouco de reiteração na parte que antecede o epílogo — mas esse epílogo, que conta com a participação do próprio diretor, é absolutamente surpreendente. Com um misto de criatividade e autocrítica, Scorsese aponta tanto para a dessensibilização das pessoas perante os crimes que ajudaram a formar o país quanto para a espetacularização da violência.