O primeiro choro de 2024 (Vidas Passadas eu vi ainda no ano passado) veio durante uma cena de Rustin (2023), filme disponível na Netflix que valeu uma indicação ao Oscar de melhor ator para Colman Domingo.
Trata-se de uma das tantas cinebiografias que costumam cativar os membros da Academia de Hollywood. Vide os recentes Estados Unidos Vs. Billie Holiday (2020), Mank (2020), King Richard (2021), Os Olhos de Tammy Faye (2021), Apresentando os Ricardos (2021), Tick, Tick... Boom! (2021), Elvis (2022) e Blonde (2022), que valeram a seus protagonistas uma vaga na lista de concorrentes. De 2000 para cá, 25 atores e atrizes que encarnaram personagens reais foram oscarizados. A relação inclui Gary Oldman como Winston Churchill em O Destino de uma Nação (2017), Olivia Colman como a rainha Ana de A Favorita (2018), Rami Malek como Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody (2018), Renée Zellweger como Judy Garland em Judy (2019), Will Smith como o pai das tenistas Venus e Serena Williams em King Richard e Jessica Chastain como a religiosa e estrela da TV Tammy Faye.
No Oscar 2024, estão na briga ainda Cillian Murphy na pele do físico considerado o pai da bomba atômica, em Oppenheimer; Bradley Cooper como o regente Leonard Bernstein, em Maestro, que também rendeu uma indicação a Carey Mulligan (como Felicia Montealegre); e Annette Bening, que interpreta a nadadora sexagenária Diana Nyad em Nyad. Podemos colocar no mesmo barco Lily Gladstone, já que a Mollie Burkhardt de Assassinos da Lua das Flores é baseada em uma mulher indígena que realmente existiu.
Produzido pelo casal Barack e Michelle Obama, Rustin foi escrito por Dustin Lance Black, vencedor do Oscar de roteiro original por Milk: A Voz da Igualdade (2008), e Julian Breece. A direção coube a George C. Wolfe, realizador dos premiados espetáculos da Broadway Angels in America (1993) e Bring in 'da Noise/Bring in 'da Funk (1996) e de outros dois filmes biográficos: A Vida Imortal de Henrietta Lacks (2017), sobre a mulher negra doadora involuntária de células cancerosas, que ajudaram a salvar inúmeras pessoas e possibilitaram incontáveis descobertas científicas, e A Voz Suprema do Blues (2020), recriação dos bastidores da gravação de Black Bottom, um dos sucessos da cantora Ma Rainey (1886-1939), considerada a mãe do blues, o gênero que os afro-americanos desenvolveram no extremo sul dos EUA. Neste último, Colman Domingo fazia um coadjuvante, o guitarrista e trombonista Cutler (Colman Domingo), líder do quarteto musical que acompanhava a estrela.
Bayard Rustin (1912-1987) foi um importante ativista na luta pelos direitos civis da população afrodescendente dos Estados Unidos. Sem ele, não teria existido a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, em 28 de agosto de 1963, quando mais de 250 mil pessoas se reuniram na capital dos Estados Unidos. Mas seu nome correu risco de ser apagado da História.
— No dia em que nasci negro, eu também nasci homossexual — diz o personagem.
Por causa dessa dupla condição, Bayard sofria um duplo preconceito: o racial e o sexual. Apanhou da polícia tanto por ser negro quanto por ser gay. Mas jamais transformou sua dor em fúria.
_ Se desejamos uma sociedade de paz, então não podemos alcançar tal sociedade através da violência — pregava. — O pacifista se opõe a usar a violência, mas deve estar preparado para recebê-la.
Importante não confundir pacifismo com inércia. "Quando um indivíduo protesta contra a recusa da sociedade em reconhecer a sua dignidade, o seu ato de protesto confere dignidade a ele", dizia Bayard. E apesar do discurso pacifista, não raro o protagonista perdia o controle da língua — no filme, volta e meia alguém suplica que fique quieto durante uma reunião. O ativista também não se deixava intimidar por autoridades brancas: a certa altura, peita o comandante da polícia.
Sua mente o tornou uma espécie de guru para um dos principais líderes do movimento negro dos EUA, o pastor Martin Luther King (1929-1966), encarnado no filme com sobriedade por Aml Ameen. Mas seu corpo, ou o que fazia com o seu corpo, provocou o desprezo, o escárnio e o boicote por outras eminências da luta contra o racismo, como Roy Wilkins (1901-1981), da NAACP, a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, e o pastor e político Adam Clayton Powell (1908-1972). Esses dois personagens são vividos, respectivamente, por Chris Rock — em um raro registro dramático — e Jeffrey Wright (outro indicado ao Oscar de ator, por American Fiction), que saboreia cada palavra incisiva em suas duas cenas.
Mas é a atuação de Colman Domingo que sustenta Rustin, um filme bastante comum do ponto de vista narrativo e formal. Nascido há 54 anos na Filadélfia, ele tem sido apontado como "o primeiro astro negro e gay". Vencedor do Emmy de ator convidado pela série Euphoria, em 2022, por Rustin ele recebeu indicações aos principais prêmios: o Oscar, o Globo de Ouro, o Bafta, o Critics Choice e o SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA.
Domingo equilibra facetas por vezes conflitantes de Bayard: o dom para a estratégia e a impulsividade, a autoconfiança e a humildade. Seus diálogos são ora diretos, ora irônicos — e por vezes mistura as duas características na mesma frase. Na cena que me fez chorar (não vou dar spoiler), é basicamente seu corpo que fala: um espasmo de alívio, acompanhado por uma breve interjeição e uma lágrima furtiva, quando mais uma difamação é reparada.