Aproveitei as férias para assistir à segunda e à terceira temporada de Slow Horses (2022-), uma das melhores séries da atualidade. Não à toa, a Apple TV+ já anunciou a renovação para uma quinta leva de episódios, mesmo que os seis da quarta ainda nem tenham a data de estreia confirmada. Aliás, esse é um dos trunfos deste título do gênero espionagem: cada história tem apenas seis capítulos (girando entre 40 e 50 minutos), lançados um por semana — um número e um modo de distribuição perfeitos para manter o engajamento do espectador sem correr risco de que ele se perca na trama ou se aborreça com as enrolações que costumam esticar seriados.
Na primeira vez que vemos o personagem principal, o agente secreto britânico Jackson Lamb (encarnado pelo excelente ator Gary Oldman), ele está deitado em um sofá. Suas duas meias estão furadas, e em uma mesinha de centro repousam uma garrafa de uísque quase vazia e restos de comida em embalagens de alumínio. O protagonista está dormindo em seu escritório, um pardieiro acarpetado de cores tristes e com pastas e arquivos espalhados por todos os cantos. De repente, Lamb acorda: foi despertado pelo barulho do próprio peido.
A flatulência do personagem é recorrente em Slow Horses. Mas antes de conhecermos Lamb, seremos apresentados a um outro agente secreto britânico, River Cartwright (Jack Lowden, ator do ótimo filme Calibre e um clone de Ewan McGregor), neto de um aposentado astro do MI5 (papel de Jonathan Pryce, indicado ao Oscar pelo Francisco de Dois Papas). Nos 10 eletrizantes minutos da sequência de abertura, River está envolvido na identificação e na caça de um suposto terrorista no Aeroporto de Stansted, em Londres. Não é spoiler dizer que esse espião vai entrar numa fria. Mais precisamente, numa geladeira: Slough House, um departamento para onde são escanteados os funcionários do serviço de inteligência que cometem uma, ora, cagada.
Jackson Lamb chefia essa turma, que, na primeira temporada, inclui Catherine Standish (Saskia Reeves), sua secretária e uma alcoolista em recuperação; Min Harper (Dustin Demri-Burns), que esqueceu um arquivo ultrassecreto no metrô; Roddy Ho (Christopher Chung), um ex-hacker bastante arrogante; Louisa Guy (Rosalind Eleazar), cuja missão anterior terminou mal; Struan Loy (Paul Higgins), que enviou um e-mail inapropriado de trabalho; e Sid Baker (Olivia Cooke, do filme O Som do Silêncio), evidentemente a mais competente — ninguém sabe como foi parar em Slough House. Eles são os slow horses, os pangarés do título da série baseada em romances (ainda inéditos no Brasil) do premiado escritor inglês Mick Herron. São os “losers, misfits and boozers” (perdedores, desajustados e bêbados) dos versos cantados por Mick Jagger na música de abertura, Strange Game, cuja levada traduz o clima das histórias: ora há um humor debochado, ora há uma tensão nervosa.
Herron, 60 anos, é considerado um herdeiro espiritual de John Le Carré (1931-2020), autor que, por sua vez, tomou distância do arquétipo de agente secreto criado por Ian Fleming (1908-1964): James Bond. Ao contrário do mulherengo e glamoroso 007, o personagem principal de Le Carré — ele próprio um ex-funcionário do MI5 e do MI6 (respectivamente, os serviços do Reino Unido de inteligência doméstica e internacional) —, George Smiley, é um burocrata acima do peso que usa chantagem e manipulação para conseguir informações. É uma caracterização mais realista de um agente à época da Guerra Fria (1945-1991), assim como suas aventuras são mais arrastadas e complexas. Esse anti-herói apareceu em nove livros, incluindo O Espião que Saiu do Frio (1963) e O Espião que Sabia Demais (1974), ambos já adaptados para o cinema (assim como A Garota do Tambor e O Jardineiro Fiel, entre outros títulos).
Aliás, foi no papel de Smiley que Gary Oldman concorreu ao Oscar de melhor ator pela primeira vez — dirigido por Tomas Alfredson, o filme O Espião que Sabia Demais (2011) disputou ainda as estatuetas de roteiro adaptado e música original. Daí que é uma espécie de evolução natural escalá-lo para encarnar Jackson Lamb, ele também um burocrata cretino, barrigudo e deselegante — tanto nas roupas quanto nos modos. Seu pum é como uma arma desestabilizadora.
— Esse foi um mortal — Lamb avisa a sua secretária quando Standish vai entrar no escritório.
Em outras ocasiões, o sujeito é sorrateiro.
— Meu Deus, você é nojento! — pragueja Diana Taverner (Kristin Scott Thomas, indicada ao Oscar de melhor atriz por O Paciente Inglês), a número 2 na hierarquia do MI5, ao ser surpreendida por um ataque de gás durante um encontro clandestino com Lamb.
Cenas assim equilibram-se com momentos de drama e suspense, sobretudo a partir do sequestro de um universitário britânico parente de uma autoridade paquistanesa, em uma ação perpetrada pela organização de extrema-direita Filhos de Albion — é essa a trama da primeira temporada.
Na segunda, baseada no livro Dead Lions, tudo começa com um veterano ex-agente reconhecendo e seguindo o homem que o torturou durante a Guerra Fria, em Berlim, apenas para morrer em um ônibus devido a um aparente ataque cardíaco. Jackson Lamb decide investigar o caso, que envolve uma conspiração russa. A história conta com participações de Sophie Okonedo e Rade Serbedzija.
A terceira temporada, que talvez seja a melhor, é inspirada em Real Tigers. Tem início em Istambul, na Turquia, onde dois agentes, Sean Donovan e Alison Dunn, são amantes. Ele tenta pegar um arquivo confidencial que ela roubou da embaixada britânica, e a briga do casal termina de maneira trágica — não vale a pena avançar na sinopse, para evitar spoilers, mas o enredo possibilita discussões morais e políticas, cenas de ação bem coreografadas e ótimas tiradas cômicas.
Portanto, Slow Horses é como se fosse uma versão quase humorística de 24 Horas (2001-2010), o seriado no qual o agente Jack Bauer personificou o sentimento dos EUA após o 11 de Setembro e que bebeu da cultura do medo promovida pelo presidente George W. Bush. Tanto é que o principal roteirista na adaptação dos livros de Mick Herron, o inglês Will Smith, traz no currículo vários episódios de duas séries que misturavam comédia com política: The Thick of It (2005-2012), que satirizava os bastidores do governo no Reino Unido, e Veep (2012-2019), sobre a vice-presidente estadunidense.
Como nas obras de Le Carré e como, por exemplo, na série The Office (2005-2013), há bastante foco no cotidiano dos personagens, agentes secretos que podem ser atrapalhados, ambíguos, teimosos, chatos e até covardes, ainda que com lampejos de coragem. Os diretores (incluindo James Hawes, que assinou Hated in the Nation e Smithereens na antologia Black Mirror) dão holofote a praticamente todo o elenco. Mas o palco é mesmo do duelo de frieza, sarcasmo e línguas ferinas ofertado por Kristin Scott Thomas e sobretudo Gary Oldman. Não à toa, o ator de 65 anos, vencedor do Oscar, do Bafta, do Globo de Ouro e do SAG Awards na pele do primeiro-ministro Winston Churchill de O Destino de uma Nação (2017), já declarou que Jackson Lamb pode ser seu último personagem.
Em entrevista ao site Deadline, Oldman, que também foi indicado ao prêmio de melhor ator da Academia de Hollywood por Mank (2020), disse se sentir sortudo e muito feliz por protagonizar Slow Horses e por vivenciar pela primeira vez o sentimento de família nos bastidores de uma série, algo que não se experimenta tanto no cinema. E acenou com a possibilidade de se aposentar depois de encarnar Lamb em quantas temporadas forem possíveis (os personagens criados por Herron já estrelaram 11 livros):
— Depende de todas as pessoas grandes no andar de cima e do público e, obviamente, da audiência e do que a Apple diz. Mas, sim, eu poderia me ver interpretando Jackson pelos próximos anos. Absolutamente. Lamb é um personagem icônico. Então, se for para sair com um estrondo, a aposentadoria está no horizonte. Sim. Eu posso ver isso.