A melhor série para ver nas férias é The White Lotus, em cartaz desde 2021 na HBO Max. Não só porque acompanha as aventuras (ou desventuras) de um grupo de turistas hospedado em um resport de luxo localizado em um cenário paradisíaco. Não só porque suas duas temporadas disponíveis na plataforma de streaming são curtas — a primeira tem seis episódios de uma hora de duração, e a segunda, sete, de modo que ninguém precisa passar muito tempo diante de uma tela. Mas sobretudo porque o seriado é excelente, como comprovam os 10 troféus Emmy conquistados em 2022, as 24 indicações para a premiação que será entregue no dia 15 de janeiro e a renovação para uma terceira temporada, que será ambientada na Tailândia e só deve estrear em 2025, por causa da greve de atores e roteiristas que paralisou Hollywood no segundo semestre de 2023.
A primeira temporada venceu as seguintes categorias no Emmy: melhor minissérie ou antologia, direção, roteiro (ambos para Mike White), ator coadjuvante (Murray Bartlett), atriz coadjuvante (Jennifer Coolidge), trilha sonora e música-tema (as duas compostas por Cristobal Tapia de Veer). Como nenhum personagem é mais importante do que os outros e todos tiveram seu momento de brilho, praticamente o elenco completo recebeu indicação aos troféus de coadjuvante: também concorriam as atrizes Connie Britton, Alexandra Daddario, Natasha Rothwell e Sydney Sweeney e os atores Jake Lacy e Steve Zahn.
Ao ganhar uma segunda temporada, The White Lotus passou a ser considerada como uma série dramática (mas com muito humor, vale frisar para quem nunca viu) no Emmy. Entre as 24 indicações ao prêmio, estão melhor série dramática, direção, roteiro, ator coadjuvante (F. Murray Abraham, Michael Imperioli, Theo James e Will Sharpe) e atriz coadjuvante (Jennifer Coolidge, Meghann Fahy, Sabrina Impacciatore, Aubrey Plaza e Simona Tabasco).
Saiba mais sobre as duas temporadas.
A 1ª temporada de "The White Lotus"
Os seis episódios da primeira temporada de The White Lotus conseguem conjugar de modo brilhante comédia cáustica, dramas empáticos, mistério policial e crítica social — o alvo é o privilégio branco, a elite que jamais cede seu lugar ou estende a mão sem querer nada em troca, aqueles que têm os meios para fazer o mundo mudar, mas preferem a estagnação, a gente que se safa simplesmente por causa do sobrenome ou da carteira.
De quebra, oferece três cenas raras ou talvez nunca vistas, todas temperadas por um senso de humor bizarro e um gosto pelo constrangimento e pelo choque: a primeira envolve a genitália masculina, a segunda, sexo entre homens, e a terceira, excrementos. São imagens que tão cedo não deixarão a cabeça do espectador.
The White Lotus foi criada, escrita e dirigida pelo californiano Mike White, 53 anos, roteirista (e ator) dos filmes Por um Sentido na Vida (2002) e Escola de Rock (2003) e da série Enlightened (2011-2013). A trama começa em um saguão de aeroporto. Um casal de meia-idade tenta puxar papo com um sujeito de seus 30 anos. Na conversa truncada, descobrimos que ele estava em lua de mel e que houve um assassinato no resort de luxo onde se hospedara em uma ilha do Havaí, o White Lotus — "Tirando isso, as férias foram boas?", pergunta a mulher, no primeiro indício do tipo de humor que virá pela frente. O caixão com o corpo seguirá viagem no mesmo voo. Quem teria morrido? Será que a esposa dele, ausente na sala de espera? Óbvia mas espertamente, os diálogos não revelam essa identidade, que só será descoberta bem mais adiante.
Aí, a série recua uma semana no tempo para acompanhar a chegada de um grupo de novos hóspedes ao White Lotus. O cara do aeroporto é o mimado Shane (interpretado por Jake Lacy) recém casado com Rachel (Alexandra Daddario), uma jornalista em crise existencial — e por meio da qual Mike White também abordará o machismo estrutural. No barco, ainda está a família Mossbacher: Nicole (Connie Britton), empresária que não para de trabalhar mesmo durante as férias, seu marido, Mark (Steve Zahn), um tanto emasculado pelo sucesso da esposa, a jovem Olivia (Sydney Sweeney), que trouxe junto uma amiga, Paula (Brittany O'Grady, atriz filha de pai branco e mãe negra), que por sua vez trouxe um farnel de psicotrópicos, e o adolescente Quinn (Fred Hechinger), mais interessado nos seus apetrechos eletrônicos. Completa a lista Tanya McQuoid (Jennifer Coolidge), uma ricaça carente e alcoolista que veio ao Havaí para jogar no mar as cinzas de sua falecida mãe.
Essa turma será recepcionada pelos empregados do resort. Entre esses, destacam-se Armond (uma caracterização magnetizante do australiano Murray Bartlett), o gerente com um bigode à la Tom Selleck, Belinda (Natasha Rothwell), que administra o spa, e Kai (Kekoa Kekumano), um garçom. Os três representam a classe trabalhadora — que, como diz Armond, precisa ser invisível, mas estar sempre pronta para servir — e também as populações marginalizadas. Armond é homossexual, Belinda, mulher e negra, e Kai, descendente de polinésio, simboliza os nativos que foram dizimados ou, na melhor das hipóteses, expulsos de suas próprias terras pelos colonizadores brancos.
Diante desse elenco de personagens, um desavisado pode achar que os primeiros serão vilões caricatos, e os segundos, coitadinhos explorados. Não é por aí. Sim, as interações da série são bastante calcadas em jogos de poder e submissão, mas o gerente do White Lotus, por exemplo, sabe ser maquiavélico e abusivo. Alguns dos hóspedes vão apresentar mais camadas do que a impressão inicial deixa entrever. Outros, no entanto, serão decifrados desde a primeira cena.
— Peraí, peraí, peraí — diz Shane, interrompendo um momento romântico com Rachel em sua suíte. — Este é o quarto errado.
Não importa que Rachel esteja feliz com as luxuosas acomodações, que a vista seja maravilhosa e que, ora, possa, de fato, ter ocorrido um erro do hotel na reserva. O instinto competitivo do capitalismo fala mais alto. Um filhinho da mamãe, Shane se torna monotemático e a todo instante vai fustigar o gerente por causa desse assunto, dando razão ao monólogo de Armond sobre sua clientela: eles só querem ser mimados, como o filho único, o bebê especial do hotel.
Outros personagens são mais nuançados, como Mark. O pai dos Mossbacher abriga o ridículo e a vulnerabilidade, a perspicácia e o egoísmo. Vale prestar atenção em seus diálogos com a família à mesa do café da manhã, do almoço ou do jantar. Diante dos filhos que se revezam entre a indiferença, o tédio e a patrulha politicamente correta, Mark costuma comentar sobre as consequências do imperialismo e do colonialismo, sobre culpa burguesa, sobre ser um homem branco nos dias de hoje. Às vezes, parece que ele vai para um lado, mas logo a frase faz um desvio. O mundo é assim mesmo, ele justifica:
— Ninguém cede seus privilégios. Isso seria um absurdo. Vai contra a natureza humana. Nós todos só estamos tentando ganhar o jogo da vida.
Oscilando entre o patético e o abjeto, Mark personifica o tom empregado em The White Lotus por Mike White, cujo trabalho foi assim descrito por Sophie Gilbert no site da revista cultural estadunidense The Atlantic: "Ele parece preso entre reconhecer a infelicidade (de Mark, Shane, Tanya etc) e espinhá-los por seu comportamento tóxico, nunca se estendendo em uma direção ou outra, nunca permitindo que a série seja puramente engraçada ou puramente trágica por um minuto. Tudo é um empurra-empurra entre sentir por seus ricos e monstruosos personagens e odiá-los por não verem a verdade sobre si mesmos".
Essa alternância de tom é muito bem sinalizada e sintetizada pela trilha sonora composta por Cristobal Tapia de Veer. Mike White disse que queria "uma música que faça você sentir que haverá algum tipo de sacrifício humano a qualquer momento". Depois, elogiou o compositor por ter traduzido a sensação de "ansiedade tropical". De Veer definiu como uma espécie de "Hitchcock havaiano" suas partituras, que apresentam flautas dissonantes e uma percussão em aceleração constante, permeadas por sons animalescos e gemidos humanos. O resultado é a um só tempo cômico, sinistro e sensual, e o efeito é sempre imersivo, hipnótico e contagiante.
A 2ª temporada de "The White Lotus"
Os sete episódios da segunda temporada de The White Lotus dão um passo adiante, evitando a mera repetição de uma "fórmula".
O cenário é outra ilha, a da Sicília, na Itália, onde também há um resort de luxo da fictícia rede The White Lotus. Lá, as ligações com a realeza e a com a máfia vão suscitar reflexões sobre a decadência com elegância dos palazzos mantidos por famílias que já não têm mais fortunas e sobre a sedução da trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990) junto ao imaginário masculino — o cinema também será referenciado em uma sequência na cidadezinha de Noto que homenageia A Aventura (1960): como ocorre com a personagem de Monica Vitti no filme do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, uma mulher será observada, acompanhada, rodeada e até acossada por muitos homens que surgem em cena gradualmente.
O hipnotizante tema de abertura é o mesmo — e permanece alternando-se entre o cômico, o sinistro e o sensual, sintetizando a variação de tom da própria série —, mas com um arranjo distinto. Há uma introdução beatífica de harpa, acordes que remetem a uma ópera trágica, um agudíssimo coro yodel e, por fim, uma batida contagiante de música eletrônica. Não à toa, a música composta por Tapia de Veer chegou a ser tocada em boates e shows da Europa, segundo reportagem do jornal britânico The Guardian.
Como na temporada inicial, tudo começa com um cadáver não identificado — eis um dos charmes da porção policial de The White Lotus: o espectador é instigado a descobrir não apenas quem matou, mas também quem morreu (e desta vez parece haver mais apostas, mais candidatos a vítima). Se na primeira história havia um caixão sendo transportado de avião, agora surge um corpo boiando na praia.
Aí, como igualmente ocorre na temporada original, a trama volta uma semana no tempo para acompanhar a chegada de novos hóspedes ao resort da Sicília. A composição do grande elenco — de um lado, ricos esnobes, mimados e egoístas; do outro, trabalhadores mais humildes, mas não por isso menos espertos — sugere uma reprodução da dinâmica de sátira social da primeira temporada. Só que, desta vez, The White Lotus está menos interessada nas diferenças econômicas: foca nas relações de poder entre casais e amantes, entre homens e mulheres, movidas por desejo sexual, ciúme, competição, machismo, masculinidade frágil, traição, mentira e autoengano. E a série também não investe tanto na comicidade, tem um ar mais melancólico que torna os personagens mais palpáveis. Falando nisso, os corpos bonitos iluminados pelo sol siciliano são contrastados por tomadas soturnas do mar bravio: esta é uma série que te excita para logo em seguida te deixar deprê.
Acontece o mesmo com os personagens, vide a trajetória da rígida gerente do hotel, Valentina (Sabrina Impacciatore). Além de encarar as exigências e os caprichos dos hóspedes, ela precisa lidar com suas próprias — e inauditas — vontades e com duas garotas que vivem frequentando indevidamente o White Lotus: a prostituta Lucia (Simona Tabasco) e a aspirante a cantora Mia (Beatrice Grannò).
O elemento de ligação entre a primeira e a segunda temporadas é a milionária carente Tanya (Jennifer Coolidge). A personagem é tão focada no prazer e no luxo e tão sem-noção sobre a vida real, que não desce do salto nem nos momentos de perigo. Ela desembarca em Taormina, na Sicília, acompanhada do agora marido Greg (Jon Gries) e da assistente, Portia (Haley Lu Richardson), que será obrigada a ficar longe dos olhos do sujeito.
Nessa vida em segredo, Portia conhecerá o certinho Albie (Adam DiMarco), que está em viagem com seu pai, Dominic (Michael Imperioli, o Christopher Moltisanti do seriado Família Soprano), que levou um "basta" da esposa depois de mais uma traição, e seu avô, Bert di Grasso (F. Murray Abraham, ganhador do Oscar de melhor ator coadjuvante por Amadeus), que veio à procura de parentes.
Um outro núcleo é formado pelos amigos de universidade e hoje empresários e/ou investidores Cameron (Theo James) e Ethan (Will Sharpe) e suas respectivas esposas: Daphne (Meghann Fahy) e Harper (Aubrey Plaza). Os dois casais vão colecionar atritos, mas também surgirão faíscas de atração sexual.
ALERTA SOBRE SPOILERS DA PRIMEIRA TEMPORADA.
Esse elenco de personagens permite a Mike White ampliar as alfinetadas sobre masculinidade frágil desferidas na primeira temporada, na qual o recém-casado Shane era um filhinho da mamãe, e Mark vivia à sombra da esposa, uma executiva bem-sucedida — (REFORÇANDO O ALERTA) e Marke também passa por uma crise existencial ao descobrir a verdadeira causa da morte do pai (aids) e que seu maior exemplo de homem havia tido relações homossexuais. Em The White Lotus 2, Bert entende o assédio sexual como elogio, Dominic mostra um suposto arrependimento por ser viciado em sexo e infiel, e Albie dá a real ao avô e ao pai:
— Os homens amam O Poderoso Chefão porque se sentem castrados pela sociedade contemporânea. É uma fantasia sobre uma época em que eles podiam sair e resolver todos os seus problemas com violência, dormir com todas as mulheres e depois voltar para casa, onde a esposa não faz perguntas e serve massa para eles.
Já Cameron e Ethan exemplificam a competição sobre virilidade, a disputa por território e a ostentação financeira — mas também, em uma ironia do roteirista, discutem sobre quem tem o casamento mais feliz, um papo costumeiramente atribuído às mulheres.
— Eu sinto pena dos homens — comenta Daphne em um episódio. — Eles acham que estão fazendo algo realmente importante, mas, na verdade, estão apenas vagando sozinhos.
Cabem a Cameron e Daphne duas das cenas mais marcantes de The White Lotus 2. A primeira é sutil. Da cama no quarto do hotel, a esposa chama por ele, que está no banheiro, passando fio dental, para falar por videochamada com os filhos. Somente o espectador vê Cameron engolindo seu desgosto e colocando a máscara de pai sorridente e marido amoroso.
A segunda cena é um show à parte da atriz Meghann Fahy e do roteirista Mike White. Ao receber uma informação desabonadora, nos primeiros 30 segundos (mais ou menos) de reação silenciosa ela vai trocando o rosto radiante e despreocupado de sua personagem por uma expressão atordoada e, talvez, genuinamente magoada. Mas logo Daphne se recupera — é como se nesses breves instantes, disse alguém no Twitter, ela retratasse os cinco estágios do luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Em seguida, ela elabora um monólogo antológico sobre autoengano, lucidez e resiliência:
— Você nunca sabe realmente o que se passa na cabeça das pessoas ou o que elas fazem, certo? Você passa cada segundo com alguém, e ainda tem essa parte que é um mistério, sabe? Você não precisa saber tudo para amar alguém. Um pouco de mistério. É meio sexy. Eu acho que você só... Você faz o que for preciso para não se sentir vítima da vida, sabe?