Na última atualização da lista dos melhores filmes de 2023, mudei a regra de elegibilidade.
A partir de observações dos integrantes do grupo de WhatsApp formado por leitores da coluna, reconheci que o critério de só considerar a data de lançamento no Brasil causava confusão, por juntar no mesmo ranking títulos do ano vigente e do ano anterior. E para a posteridade, o que conta é a estreia mundial, seja no nosso país ou no Exterior.
O risco é claro: alguns dos longas-metragens mais badalados da temporada vão chegar por aqui apenas em 2024, para capitalizar possíveis indicações ao Oscar (a Academia de Hollywood anuncia os concorrentes no dia 23 de janeiro). Ainda bem que eventos como a Mostra Internacional de São Paulo, o Festival do Rio e o Festival Varilux de Cinema Francês trouxeram obras como Anatomia de uma Queda, da francesa Justine Triet, Palma de Ouro no Festival de Cannes, e Pobres Criaturas, do grego Yorgos Lanthimos, Leão de Ouro no Festival de Veneza. Mas não deu para ver todos os destaques do ano (ou esses títulos simplesmente não me sensibilizaram) — e Porto Alegre voltou a ficar longe demais das capitais: ainda não recebeu Folhas de Outono, do finlandês Aki Kaurismaki, já exibido em Belo Horizonte, no Rio e em São Paulo, por exemplo. Pena também que o terror Cuando Acecha la Maldad, do argentino Demián Rugna, ganhará suas primeiras exibições nacionais somente no ano que vem.
Sem mais delongas, eis minha seleção dos 15 melhores filmes de 2023, em ordem puramente alfabética, já que é mínima a distância entre eles: todos provocaram emoção e/ou reflexão, todos seguem ressoando na memória e na alma. Tem um bônus, como de costume na coluna: os 15 melhores filmes de 2022 que só em 2023 chegaram até nós. Clique nos links se quiser saber mais.
1) Anatomia de uma Queda
De Justine Triet. A França poderia ter o franco favorito ao Oscar internacional, pois este título ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, cinco troféus da Academia Europeia — melhor filme, direção, atriz (Sandra Hüller), roteiro (escrito por Triet com seu companheiro, Arthur Harari) e edição (Laurente Sénéchal) —, foi eleito o melhor estrangeiro do ano pela National Board of Review, dos EUA, e concorre em quatro categorias do Globo de Ouro e em três do Critics Choice. Mas o país escolheu O Sabor da Vida (The Taste of Things no título em inglês), que rendeu a Anh Hung Tran o prêmio de direção em Cannes e entrou na lista de semifinalistas do Oscar, mas não parece ter o mesmo apelo.
Anatomia de uma Queda é um drama de tribunal sobre uma escritora que é a principal suspeita de matar o marido em um chalé isolado nos Alpes franceses — o corpo foi descoberto pelo filho do casal, o menino cego Daniel (Milo Machado Graner). A investigação traz à tona as fissuras do casamento, coloca um peso sobre o garoto — seu testemunho pode ser decisivo para culpar ou inocentar a mãe — e permite ao filme discutir um tema muito contemporâneo: o que é verdade? Em texto publicado em ZH, o crítico e pesquisador Marcus Mello também destacou a atriz alemã Sandra Hüller, que, "interpretando em dois idiomas que não são o seu, o inglês e o francês, cria uma personagem multifacetada, protagonista absoluta de um drama conjugal de contornos bergmanianos, que a coloca desde já como favorita ao Oscar". (Foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo e no Festival Varilux e estreia comercialmente em 25/1)
2) Assassinos da Lua das Flores
De Martin Scorsese. A exemplo de Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995), Gangues de Nova York (2002), Os Infiltrados (2006) e O Irlandês (2019), a adaptação de um livro-reportagem de David Grann é um filme policial que permite ao grande cineasta traçar um painel histórico dos Estados Unidos e examinar a violência endêmica de sua sociedade. Em foco, desta vez, estão a ganância e o racismo que levaram homens brancos a exterminar indígenas Osage, no Estado do Oklahoma, na década de 1920 — a investigação das mortes ajudou a consolidar o FBI, a polícia federal estadunidense, que tinha surgido naqueles tempos. Esse povo nativo tinha sido expulso de suas terras para uma região rochosa e infértil, mas eles acabaram descobrindo petróleo (como Scorsese reconstitui com seu característico uso da câmera lenta) e enriquecendo (como o diretor mostra mimetizando os cinejornais daquela época). Os Osage ousaram prosperar, despertando o ódio e a cobiça, como aconteceu com a rica comunidade negra de Tulsa, no mesmo Oklahoma, massacrada em 1921 por uma multidão branca.
Scorsese dirige pela primeira vez em um longa-metragem os dois atores com quem mais trabalhou. Em sua sexta colaboração, Leonardo DiCaprio interpreta Ernest Burkhardt, ex-soldado que é acolhido pelo tio, William Hale (Robert De Niro, em uma atuação monumental no décimo filme com o diretor), o Rei, um sujeito de duas caras: posa de amigo dos Osage, mas na verdade só está interessado em se apossar da sua fortuna. Ernest vai se casar com uma indígena, Mollie (Lily Gladstone, o coração do filme), mas, como os típicos personagens scorsesianos, viverá sob o tormento, sublinhado pela música de Robbie Robertson. Tem o corpo e a alma cindidos — "Quase amo dinheiro tanto quanto amo minha mulher", admite. Não há mistério sobre para onde a trama de Assassinos da Lua das Flores vai, e inclusive há um pouco de reiteração na parte que antecede o epílogo — mas esse epílogo, que conta com a participação do próprio diretor, é absolutamente surpreendente. Com um misto de criatividade e autocrítica, Scorsese aponta tanto para a dessensibilização das pessoas perante os crimes que ajudaram a formar o país quanto para a espetacularização da violência. (Disponível para aluguel no Amazon Prime Video, na Apple TV, no Google Play e no YouTube)
3) Barbie
De Greta Gerwig. É mais um avanço na carreira da cineasta estadunidense, que começou no cinema alternativo e de baixíssimo custo (Nights and Weekends, longa-metragem de 2008 que ela estrelou e codirigiu, tinha US$ 15 mil de orçamento), tornou-se uma das raríssimas mulheres indicadas ao Oscar de direção por Lady Bird: A Hora de Voar (2016) e assinou Adoráveis Mulheres (2019), que disputou a estatueta dourada de melhor filme. Agora, Gerwig entrou para o time das superproduções: bancado pela Warner, Barbie custou US$ 145 milhões e virou o campeão de bilheteria da temporada, com US$ 1,44 bilhão arrecadados.
Mas Barbie é um raro tipo de superprodução: não tem um herói masculino e, mais do que isso, tem um discurso feminista. E ainda que traga o logotipo da Mattel nos créditos de abertura, nem a empresa fabricante da boneca escapa das críticas nesta sátira escrita pela diretora com o seu companheiro, o cineasta Noah Baumbach. Ao entrar numa crise existencial, começando a pensar em morte e em celulite, a protagonista vivida por Margot Robbie descobre que precisa ir para o mundo real, para encontrar a criança que brinca com ela. O Ken (Ryan Gosling) apaixonado por ela vai junto, e aí os dois percebem que, do lado de cá, há um patriarcado: são os homens que mandam e as mulheres são constantemente assediadas e menosprezadas. (HBO Max)
4) Homem-Aranha: Através do Aranhaverso
De Joaquim dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson. A sequência de Homem-Aranha no Aranhaverso (2018), que venceu o Oscar de melhor animação, tem um único ponto negativo: não tem fim, deixa tudo em suspense para a terceira parte da trilogia. (Também não tem uma canção sublime como Sunflower, mas ok.)
Homem-Aranha: Através do Aranhaverso leva Miles Morales para viajar pelas mais diferentes e irreverentes realidades. É uma jornada psicodélica, na qual o público se diverte conhecendo outras variações do Amigão da Vizinhança e seus mundos. Como escreveu meu colega Carlos Redel, o filme tem o trabalho e o cuidado de entender como cada um daqueles personagens que preenchem uma infinita teia de realidades funciona, desde um universo de LEGO com todas as suas montagens e desmontagens, passando por um Aracnídeo da animação dos anos 1960, com movimentos limitados pela tecnologia da época, e chegando ao desbunde visual da versão indiana e à racionalidade amarga do Homem-Aranha 2099. Enquanto Miles precisa lidar com o vingativo vilão Mancha, também enfrenta a própria jornada de amadurecimento, tentando equilibrar seus sonhos, a expectativa de seus pais e a responsabilidade de ser um super-herói. E Gwen Stacy "tem o seu arco desenvolvido com extrema competência, conseguindo fazer um contraponto ao protagonista, mostrando que ser alguém que foi picado por uma aranha radioativa e ganhou poderes é estar sob constantes sacrifícios e segredos, o que vai minando a sua vida pessoal". (HBO Max)
5) Jogo Justo
De Chloe Dhomont. O longa-metragem de estreia da diretora estadunidense é muito mais do que o thriller erótico sugerido por seu cartaz. Estrelado por Phoebe Dynevor e Alden Ehrenreich, trata-se de um retrato tenso e aflitivo do conflito entre o empoderamento feminino e a fragilidade masculina nos ambientes de trabalho.
Em Jogo Justo, os dois atores interpretam um casal apaixonado, Luke e Emily, que precisam manter às escondidas o romance e o noivado: as regras da empresa de investimentos onde trabalham não permitem que empregados se envolvam amorosamente. Quando fica vago um cargo de analista sênior, Emily ouve um rumor de que Luke será promovido, os dois chegam a comemorar e fazer planos, mas é ela que acaba escolhida pelo chefe, Campbell (Eddie Marsan, deliciosamente cínico e implacável). Agora, ela não só vai ganhar mais do que o futuro marido: também vai mandar nele no trabalho. A decisão altera drasticamente a dinâmica do casal. (Netflix)
6) A Mesa da Sala de Jantar
De Caye Casas. Começa como uma comédia engraçadíssima: Jesus (David Pareja, melhor ator na mostra ibero-americana do Fantaspoa) e María (Estefania de los Santos), pais do recém-nascido Cayetano, estão em uma loja de móveis, onde um vendedor picareta tenta convencer o casal de comprar "la mesita del comedor" do título original, a mesinha de centro Röret, uma peça de "design sueco, pintada em bronze, com vidro inquebrável, sobre uma estrutura com a imagem de duas belas garotas, feitas em marfim e banhadas numa perfeita imitação de ouro". O marido quer levar, a esposa não, mas como ela já escolheu as cores do apartamento, o dia do casamento, o terno que ele vai usar, o vestido da sogra, a hora de ter um filho e o nome do guri — "Um nome ruim, de toureiro fascista!" —, Jesus pode curtir uma rara e pequena vitória no dia em que vão receber a visita de seu irmão, Carlos, e de sua namorada de 18 anos, Cris.
E mais não dá para dizer sobre este filme espanhol que, como de costume no Fantaspoa, nos pega de surpresa (não à toa, ganhou o troféu de melhor roteiro), armando uma trama totalmente incomum e nos colocando em uma situação absurdamente aflitiva, na qual um dos personagens sabe de algo que os outros desconhecem. Prepare-se para suar frio, quem sabe até ficar nauseado, mas não deixe de ver quando estrear oficialmente. (Foi exibido no Fantaspoa e ainda não tem previsão de estreia)
7) Monster
De Hirokazu Kore-eda. Ganhador do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, o filme remete a um clássico do cinema japonês, Rashomon (1950), de Akira Kurosawa. Na primeira parte, vemos pela perspectiva de uma mãe jovem e viúva (Sakura Ando) a mudança no comportamento do filho de 10 anos, Minato (Soya Kurokawa). Quando ele exibe sinais de violência (sua orelha chega a sangrar), ela resolve ir à escola para confrontar o professor Hori (Eita Nagayama), que seria o responsável, quem sabe o "monstro" do título. São por seus olhos que a história é contada na segunda parte. Por fim, acompanhamos os fatos junto a Minato e um colega de aula, Yori (Hinata Hiiragi).
Esssa estrutura oferece um quebra-cabeças a ser montado pelo espectador — que não necessariamente vai enxergar o quadro por completo. Como Monster aponta, cada pessoa vive uma história do seu jeito, cada um de nós tem seu ponto de vista, e o somatório nem sempre preenche todas as lacunas. Podemos, também, interpretar mal ou ignorar algo crucial devido a valores, preconceitos, normas de conduta. No comando de um elenco encantador, Kore-eda faz transparecer sua delicadeza e sua compaixão ao mesmo tempo em que retrata a monstruosidade da intolerância com o diferente, do bullying escolar, dos julgamentos precipitados e do corporativismo das instituições coletivas ("A maioria tende a se proteger, à custa de muitas outras coisas", declarou em entrevista). Também estão em foco as mentiras com as quais os adultos sufocam suas dores e o mundo de imaginação em que as crianças se refugiam. (Em cartaz no Espaço Bourbon Country e na Sala Paulo Amorim)
8) Ninguém Vai te Salvar
De Brian Duffield. A invasão alienígena, logo nos minutos iniciais, funciona como catalisadora do processo pelo qual a personagem interpretada pela ótima Kaitlyn Dever deve passar. É um processo solitário, como indica o título, que também alude à situação da personagem no enfrentamento aos E.T.s. E o diretor praticamente prescinde do diálogo ao longo de seus 93 minutos de duração, espelhando tanto a incomunicabilidade da protagonista com os demais moradores da cidade quanto seu silêncio em relação a um episódio traumático.
Essa combinação do terror físico com o psicológico conquistou Stephen King e Guillermo del Toro. "Brilhante, ousado, envolvente, assustador. Você tem que voltar mais de 60 anos, até um episódio de Além da Imaginação (no original, The Twilight Zone) chamado Os Invasores (The Invaders, 1961), para encontrar algo remotamente parecido. Verdadeiramente único", publicou King no X (o eterno Twitter). Também no X, Del Toro fez uma leitura do filme à luz do catolicismo, definindo Ninguém Vai te Salvar como "uma parábola muito divertida" sobre "reparação da alma". (Star+)
9) Oppenheimer
De Christopher Nolan. Ambição é o que não falta ao cineasta e ao protagonista deste épico com três horas de duração (a maior na carreira do diretor), orçamento de US$ 100 milhões e mais de 70 atores no elenco que reconstitui a turbulenta trajetória do físico estadunidense considerado o pai da bomba atômica: J. Robert Oppenheimer (1906-1967), brilhantemente interpretado pelo irlandês Cillian Murphy, em sua sexta colaboração com Nolan, depois da trilogia do Batman (2005-2012), de A Origem (2010) e de Dunkirk (2017).
Apesar de ser uma cinebiografia ambientada no passado (com três tempos narrativos, como de costume na filmografia do diretor), Oppenheimer tem a ambição de falar da humanidade como um todo e de dilemas muito contemporâneos. Por um lado, seu protagonista nos lembra como somos complexos e contraditórios: Oppenheimer é egocêntrico, mas também é atormentado por dúvidas e inseguranças (será que a bomba vai trazer a paz — mesmo que instada pelo medo — que ele imagina?); é um cientista, mas também é um sujeito passional (o que vai render a primeira cena de sexo em um filme de Nolan); é um gênio, mas também é ingênuo ("Como esse homem que viu tanta coisa pôde ser tão cego?", afirma um personagem). Por outro lado, o cineasta disse esperar que seu filme sirva de alerta para as empresas de tecnologia: "Quando falo com os principais pesquisadores no campo da inteligência artificial (IA), eles dizem que estão em seu momento Oppenheimer. Eles estão olhando para a história para tentar responder: 'Quais são as responsabilidades dos cientistas que desenvolvem novas tecnologias que podem ter consequências não intencionais?'." (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube)
10) Passagens
De Ira Sachs. Autor de Deixe a Luz Acesa (2012) e O Amor É Estranho (2014), o cineasta estadunidense monta um triângulo amoroso tão incandescente quanto sofrido neste longa-metragem coescrito por seu habitual colaborador, o brasileiro Maurício Zacharias. O ator alemão Franz Rogowski interpreta Tomas, um diretor de cinema que, na cena de abertura, demonstra seu caráter egoico (quem sabe infantil) e nocivo ao reclamar acintosamente de um figurante durante uma filmagem em Paris. Tomas é casado há anos com o inglês Martin (Ben Whishaw), de temperamento pacífico e algo submisso. Mas logo se apaixona pela professora francesa Agathe (Adèle Exarchopoulos).
O sexo é frequente e intenso em Passagens, porque Tomas usa o corpo tanto como ferramenta de conexão, para suprir um enorme vazio emocional, quanto como arma de manipulação dos outros dois personagens. Esse protagonista é um retrato vivo do hedonismo, do narcisismo e de uma eterna insatisfação que vemos em muita gente da vida real. (MUBI)
11) Pedágio
De Carolina Markowicz. Como em seu longa-metragem anterior, Carvão (2022), a cineasta paulista lança mão de poucos personagens e de diálogos coloquiais com humor ácido para retratar e verbalizar marcas do Brasil: a hipocrisia, a violência, a corrupção, o conservadorismo, a homofobia, o absurdo. A atriz principal é a mesma, Maeve Jinkings. E a diretora também recruta novamente Aline Marta Maia, agora em um papel maior e com direito a pelo menos uma frase antológica: "Casamento é uma coisa muito séria. A gente não pode estragar com certas verdades".
A trama se passa em Cubatão (SP), onde a protagonista, Suellen, trabalha como cobradora de um pedágio. Ela sai de casa ainda no breu, deixando na cama o namorado que seis meses atrás se instalou por lá como se fosse marido, Arauto (Thomás Aquino). Antes do serviço, quer fazer uma oferenda. É que Suellen não se conforma com a sexualidade do filho, o adolescente Tiquinho (Kauan Alvarenga), que adora gravar vídeos em que, com o rosto maquiado e usando plumas e paetês, dubla divas da música. Por isso, a protagonista de Pedágio vai dar um jeito de arranjar dinheiro para inscrever o rapaz em uma "terapia de conversão", um curso de "cura gay". (Em cartaz nos cinemas)
12) Retratos Fantasmas (2023)
De Kleber Mendonça Filho. No filme que representa o Brasil na busca por uma vaga no Oscar internacional, o cineasta de O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019, com Juliano Dornelles) retrata um mundo que virou fantasma: o dos cinemas de calçada, ponto de encontro da sociedade e com marquises cujos letreiros tanto documentavam uma época quanto "comentavam" o que acontecia na cidade e no Brasil. Ou com o próprio estabelecimento: Golpe Fulminante era o título em cartaz nos últimos dias do outrora luxuoso cine Veneza, em Recife.
Retratos Fantasmas é classificado como documentário, mas seu diretor prefere chamar de ensaio, "uma coisa livre", que não se preocupa tanto com a rigidez dos fatos e sim com impressões, sentimentos, atmosferas, e que se permite brincar, usar recursos dos filmes de terror, ficção científica e suspense, fazer colagens de imagem e de som que funcionam tanto como homenagem quanto como ressignificação. É uma coisa livre e extremamente pessoal: narrado em primeira pessoa, começa rememorando o apartamento onde morou por cerca de 40 anos e onde realizou muitas cenas de seus curtas e longas, em Recife. A capital pernambucana não é só cenário, também é personagem, mas o filme acaba sendo universal, pois as transformações urbanas sofridas por lá são comuns às outras grandes cidades. Hoje, as cidades estão tomadas por farmácias, constata o diretor em um final tão inesperado quanto bonito, desde a direção de fotografia à montagem, passando pela música — Rise, de Herb Alpert. (Netflix)
13) Tia Virgínia
De Fábio Meira. Vencedora de cinco Kikitos no Festival de Gramado — atriz (Vera Holtz), roteiro (assinado pelo diretor), direção de arte, desenho de som e prêmio da crítica —, é uma ótima comédia dramática que dá raro protagonismo a idosos (os atores têm entre 68 e 87 anos) e que retrata uma situação comum a muitos lares brasileiros: a da irmã que não se casou, nunca teve filhos e agora se vê na condição de mãe da própria mãe.
A personagem principal de Tia Virgínia tem duas irmãs, que estão vindo para passar o Natal: Valquíria (Louise Cardoso), divorciada, chegará com o filho universitário; Vanda (Arlete Salles) com o marido, Tavares (Antonio Pitanga), e uma filha, Ludmila. A trama se desenrola ao longo de um único dia, acompanhando os preparativos da ceia e os conflitos familiares — ora engraçados, ora dolorosos —, causados por motivos que vão da comida à bebida, passando, claro, por inveja, dinheiro, chantagem emocional, hipocrisia e outros quetais. Virgínia guarda mágoas e também um segredo. É uma das cartas na manga de Meira, que, no comando de um time talentoso, esconde o jogo até o final. (Disponível para aluguel em Apple TV, Claro TV e Vivo Play)
14) De Tirar o Fôlego
De Laura McGann. É um documentário que faz jus ao título e ao tema — o mundo do mergulho livre. O espectador pode realmente ficar sem ar ao acompanhar a história de Alessia Zecchini e Stephen Keenan, contada pela diretora e roteirista irlandesa com técnicas do suspense. Por isso, tanto melhor será a sua experiência se, como os praticantes desse esporte, você decidir submergir sem equipamento, ou seja, sem muitas informações.
Mas algumas coisas podem e devem ser ditas sobre De Tirar o Fôlego para atiçar sua curiosidade. Por exemplo: um dos cenários é o Blue Hole (buraco azul, em inglês), em Dahab, no Egito, considerado um dos locais mais famosos para o mergulho livre. Perigosíssimo, matou mais gente do que o Monte Everest, nos Himalaias. O sumidouro chega a ter 120 metros de profundidade e uma estrutura claustrofóbica e desorientadora, batizada de O Arco. Em 1997, os corpos entrelaçados de dois jovens mergulhadores foram resgatados. É provável que um tenha agarrado o outro enquanto entrava em pânico, arrastando para a morte o companheiro. (Netflix)
15) Vidas Passadas
De Celine Song. Em 21 de janeiro de 2023, David Ehrlich, crítico do site estadunidense IndieWire, profetizou que o primeiro longa-metragem da diretora nascida na Coreia do Sul e radicada na América do Norte seria um dos melhores do ano. Dito e feito. Vidas Passadas ganhou o principal troféu no Gotham Awards, entrou no top 10 do American Film Insitute e do National Board of Review (que também laureou Song como melhor cineasta estreante), disputa cinco categorias do Globo de Ouro, cinco do Film Independent Spirit Awards e três do Critics' Choice. Se não aparecer na lista de indicados ao Oscar, será uma tremenda surpresa.
Trata-se de um dos romances mais envolventes e comoventes, mas jamais manipulativo. Tampouco é maniqueísta no modo como retrata um triângulo amoroso que tem como vértice Nora Moon (papel de Greta Lee), que emigrou da Coreia do Sul e agora mora em Nova York, onde é uma escritora casada com o também autor Arthur (John Magaro). Na outra ponta, está Hae Sung (interpretado por Teo Yoo), que era o melhor amigo de infância de Nora quando ela ainda se chamava Na Young e tinha planos de casar com ele, e que permaneceu em Seul. O que teria acontecido se Na Young não tivesse ido embora? Essa pergunta persegue Hae Sung e o impele a procurar pistas dela no Facebook 12 anos depois.
Não, essa expressão, "12 anos depois", nunca é empregada na divisão dos capítulos. Como uma prova escrita de sua sutileza, Celine Song usa "12 anos passaram", ou seja, o tempo se move como um rio, em um fluxo contínuo que interliga eras diferentes, passado, presente e, quem sabe, futuro. O próprio roteiro aborda diretamente o tema, ao apresentar o conceito coreano de In-Yun, que sugere: as pessoas estão destinadas a se reencontrarem se suas almas já se tocaram antes. Vidas Passadas mexe profundamente com o espectador porque todos nós, em algum momento, já nos flagramos sonhando com uma segunda chance, flertando com as portas que se abrem ao pensar "e se...". Mas o filme também coloca nossos pés no chão, lembrando que estamos sempre em construção, sempre em movimento, sempre deixando algo ou alguém para trás — talvez até a pessoa que éramos. Pode ser que estejamos seguros de nossas escolhas e vontades, mas não somos imunes à fantasia e à nostalgia. Ao também debater os temas da identidade e da imigração, a diretora amplia a relevância e a ressonância de sua obra. (Foi exibido no Festival do Rio e estreia nos cinemas em 15 de fevereiro)
Menções honrosas: para a química dos atores David Jonsson e Vivian Oparah em Rye Lane: Um Amor Inesperado; para a contundência do documentário Incompatível com a Vida, que reflete sobre maternidade, luto e direito ao aborto; para a tensão construída em O Sequestro do Voo 375; para a sátira sinistra aos super-ricos em Good Boy e Piscina Infinita; para uma série de grandes cenas de ação, que inclui a pancadaria e o tiroteio no meio do caótico trânsito ao redor do Arco do Triunfo, em Paris, em John Wick 4: Baba Yaga; o plano-sequência no trem em Resgate 2; a reconstituição da batalha de Austerlitz em Napoleão; o "pouso" do Dodge Charter de Toretto, pulando de um avião em cima de uma estrada apinhada de veículos em Velozes e Furiosos 10; Peter Quill e companhia enfrentando um exército de homens e monstros ao som dos Beastie Boys em Guardiões da Galáxia Vol. 3; Tom Cruise desafiando o perigo e a idade em Missão: Impossível 7.
Os 15 melhores de 2022 que só chegaram em 2023
1) Alcarràs
De Carla Simón. Neste drama espanhol que recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim, as idílicas férias de verão de uma família são interrompidas por um ultimato: eles precisam ir embora dessas terras ou mudar de negócio, instalando painéis de energia solar em vez de cultivar pêssegos. Vividos por um elenco local, sem experiência, os personagens reagem cada um a sua maneira. Um se enfurece, outro tenta fingir que nada está acontecendo, um terceiro tenta se unir aos algozes para garantir emprego... Ao não eleger um protagonista, a diretora enfatiza a importância e o poder da comunidade em um filme sobre como a modernidade (ou a suposta modernidade) transforma radicalmente a vida no campo. E ao não estabelecer uma narrativa com um desenvolvimento dramático mais convencional, preferindo flagrar os Solés ora em cenas de crise, ora em cenas de alegria, Alcarràs espelha a alternância de momentos bons e ruins das vidas de todos nós. (MUBI)
2) Babilônia
De Damien Chazelle. O espectador de Babilônia pode reconhecer características dos títulos anteriores do diretor - Whiplash (2014), La La Land (2016) e O Primeiro Homem (2018). Novamente, Chazelle conta uma história sobre dois jovens que perseguem o sucesso em Los Angeles — outra vez, temos uma aspirante a atriz, Nellie LaRoy (Margot Robbie, excelente), e, se não um pianista, temos um cara que carrega o piano, o faz-tudo Manny (Diego Calva). Novamente, sonhos podem se tornar perigosas obsessões. Novamente, o cineasta busca sincronizar som e imagem, em uma simbiose alucinante orquestrada em parceria com seus colaboradores habituais: o editor Tom Cross e o compositor Justin Hurwitz — autor de um tema absolutamente empolgante e totalmente contagiante, que parte da instrumentação de uma banda de jazz dos anos 1920 mas acrescenta toques de rock e eletrônica. (Paramount+ e canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay)
3) Os Banshees de Inisherin
De Martin McDonagh. Foi o maior injustiçado do Oscar: recebeu nove indicações e não levou nenhuma estatueta dourada. Merecia pelo menos três: melhor ator, para Colin Farrell, que faz um trabalho mais nuançado, ator coadjuvante, para Barry Keoghan, que evita a caricatura ao interpretar o bobo do vilarejo, e roteiro original, do próprio McDonagh — a despeito da da criatividade e do desprendimento dos Daniels ao liquidificarem referências cinematográficas em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, a história de Os Banshees de Inisherin é realmente a mais surpreendente. E também é o que mais faz o espectador se colocar no lugar dos personagens. Naquela ilha da Irlanda dos anos 1920, a batalha pessoal entre dois ex-melhores amigos não serve de metáfora apenas da guerra civil que marcou o país; o microcosmo representa qualquer cenário onde alguma diferença — política, religiosa, sexual, esportiva etc. — se impõe e anula as muitas semelhanças. Onde as pessoas dão um dedo para não dar o braço a torcer. Onde o ressentimento queima e se alastra. (Star+)
4) As Bestas
De Rodrigo Sorogoyen. Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs) são um casal francês que vive em uma aldeia no interior da Galícia. Lá, eles cultivam vegetais e reabilitam casas abandonadas. Sua recusa em concordar com a implementação de um parque eólico acentuará os desentendimentos com os vizinhos, especialmente com os irmãos Xan (Luis Zahera) e Loren (Diego Anido). Sorogoyen retrata como podem ser tensas as relações humanas, sobretudo quando temperadas pela xenofobia e por visões de mundo muito diferentes: para Xan e Loren, vender as terras é a chance de escapar da miséria e do "cheiro de merda"; para Antoine e Olga, que vieram da cidade, a simplicidade da vida rural foi uma escolha. (Foi exibido no Fantaspoa e no Festival Varilux e estreia nos cinemas em 25 de janeiro)
5) Close
De Lukas Dhont. Com um estilo de filmagem muito naturalista, que remete ao dos irmãos belgas Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, o concorrente belga no Oscar internacional de 2023 tem como personagem principal Léo (em ótima atuação do estreante Eden Dambrino), 13 anos, filho caçula de agricultores que plantam flores e melhor amigo de Rémi (Gustav De Waele), que tem a mesma idade e estuda oboé para um dia, quem sabe, tornar-se músico. Os dois garotos não se desgrudam, passam o dia inteiro brincando, e de noite chegam a dormir abraçados. Mas não são namorados. Ou não importa se são ou não são, como disse o diretor de Close em uma entrevista. Este é um filme sobre como matamos a amizade entre meninos desde que eles são jovens. À medida que envelhecem e passam a lidar mais com as expectativas de masculinidade, os garotos se veem forçados a deixar de lado a ternura e a fragilidade e a abraçar a agressividade e a violência. (MUBI)
6) Decisão de Partir
De Park Chan-wook. O cineasta sul-coreano de Oldboy (2003) e A Criada (2016) venceu o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes por esta mistura de policial e romance. Tudo começa com o assassinato de um empresário rico, caso que será investigado pelo extremamente meticuloso detetive Jang Hae-Joon (Park Hae-il). A principal suspeita é a jovem esposa chinesa do falecido, Song Seo-rae (Tang Wei). Aos poucos, o caráter obsessivo de Hae-joon mistura-se a uma paixão avassaladora pela viúva. Ao flagrar as contradições de seu protagonista, Chan-wook abre um pouco mão de sua violência característica em nome de uma sensualidade à beira do explosivo. Com um quê de Brian De Palma, trabalha no registro voyeurístico e na duplicidade de seus personagens — todos estamos sempre encenando, sempre há um fino véu encobrindo nossas reais intenções. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
7) Entre Mulheres
De Sarah Polley. Ganhador do Oscar de roteiro adaptado, Entre Mulheres traz uma admirável seleção feminina, a começar por sua cineasta, que dirige as atrizes Frances McDormand, Jessie Buckley, Rooney Mara e Claire Foy. No início, o espectador pode achar que a história se passa em uma época já bastante distante, por causa dos cenários, dos figurinos, da ausência de tecnologia e das restrições impostas à população feminina — que, por exemplo, não pode estudar. Mas o filme se passa em 2010, em uma comunidade religiosa isolada do resto do mundo, onde mulheres de todas as idades precisam conviver com as agressões físicas e o abuso sexual. Quando elas descobrem que os estupros sofridos não eram obra do demônio, mas cometidos por homens que usavam tranquilizante empregado em vacas para dopar as mulheres e adolescentes e violentá-las enquanto dormiam, os agressores são presos e levados para uma cidade próxima. Só que logo vão voltar, afinal, a maioria compactua com a cultura do estupro. Aí, as personagens têm dois dias para se reunir em um celeiro e resolver como vão proceder: não fazem nada? Ficam e enfrentam os estupradores? Ou vão embora? É um debate tão doloroso quanto bonito, atravessado pelas questões de fé e religiosidade. (Amazon Prime Video)
8) Os Fabelmans
De Steven Spielberg. É uma autobiografia disfarçada do cineasta três vezes ganhador do Oscar — como diretor e produtor de A Lista de Schindler (1993) e como realizador de O Resgate do Soldado Ryan (1999). A história começa na fila para uma sessão de O Maior Espetáculo da Terra (1952), de Cecil B. De Mille, e termina com uma visita do alter ego de Spielberg, o jovem Sammy Fabelman (interpretado por Gabriel LaBelle), à sala do mestre John Ford. Entre um fato e outro, Sammy precisa lidar com seus problemas familiares (a propósito, Paul Dano e Michelle Williams encantam nos papéis do pai e da mãe) e escolares ao mesmo tempo em que descobre não apenas técnicas de filmagem — vide os efeitos visuais em um bangue-bangue caseiro —, mas sobretudo os poderes do cinema. Se o desastre de trem no filme de De Mille provocou um trauma, por exemplo, a reprodução, com uma câmera super-8 e um trenzinho de brinquedo, traz a cura. Em Os Fabelmans, os filmes aparecem como válvulas de escape, como metáforas, como meio de dizer aquilo que não se consegue verbalizar, como meio de mostrar aquilo que não se consegue ou não se quer enxergar. (Canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay)
9) A Noite do Dia 12
De Dominik Moll. O filme francês se passa em Grenoble, onde uma garota de 21 anos é incendiada por um desconhecido quando voltava para casa — solucionar o crime se torna a obsessão do detetive encarnado por Bastien Bouillon. Logo surge o primeiro desafio: existem vários suspeitos, porque a jovem tinha vários ex-namorados (ou coisa parecida). A sinopse pode induzir o espectador a imaginar um típico filme policial de caça ao assassino, mas A Noite do Dia 12 evita os clichês e as liberdades artísticas do gênero. Há um realismo feito ora de excitação, ora de frustração, ora de momentos graves, ora de conversas corriqueiras. Entre uma coisa e outra, discute-se a culpabilização da vítima e a naturalização da violência contra a mulher. (Foi exibido nos cinemas e ainda não tem previsão de estreia no streaming)
10) O Peso da Dor
De Fran Kranz. Na verdade, o filme é de 2021, mas só chegou em 2023 ao Brasil, e apenas nas plataformas digitais de aluguel. O diretor e roteirista estreante traz um ângulo pouco explorado para uma tragédia recorrente: a dos massacres com armas de fogo cometidos em escolas dos Estados Unidos. Na sala de uma pequena igreja isolada na beira de uma estrada, vão se reunir os pais de uma vítima e os pais do matador, todos na tentativa de entender o que realmente aconteceu no dia fatídico. Esses personagens são interpretados por Jason Isaacs, Martha Plimpton, Reed Birney e Ann Dowd, que nos oferecem um espetáculo profundamente humano e catártico. Com diálogos riquíssimos, O Peso da Dor (Mass, no original) aborda temas como luto, culpa e perdão, fazendo um retrato poderoso, não maniqueísta e atemporal. Lamentavelmente, foi ignorado no Oscar e no Globo de Ouro, mas ganhou o troféu Robert Altman no Independent Spirit Awards. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube)
11) Soft & Quiet
De Beth de Araújo. Filha de um brasileiro com uma chinesa-estadunidense, a diretora e roteirista acompanha em tempo real — ou seja, como se tudo tivesse sido filmado em um único plano-sequência — a primeira reunião de um grupo de mulheres neonazistas. Entre elas, está a professora de educação infantil Emily (Stefanie Estes), protagonista da trama. Com absoluto controle do caos (merecidamente, ganhou o prêmio de melhor direção no Fantaspoa), Beth de Araújo ilustra como, na casa do vizinho ou na porta ao lado, os ideais do nazismo germinam e se alastram, tendo entre os fertilizantes o ressentimento e a ignorância. Soft & Quiet também mostra como a teoria vira prática, como uma suposta "brincadeira" pode descambar para algo muito sério. Basta uma fagulha para provocar um incêndio — e aí a masculinidade tóxica surge como outro combustível: é por meio dela que Emily induz o marido a participar de uma ação que vai de mal a pior, tornando-se cada vez mais aflitiva e asfixiante, a ponto de só conseguirmos respirar no último instante do filme. (Foi exibido no Fantaspoa e ainda não tem previsão de estreia)
12) TÁR
De Todd Field. O cineasta californiano evita os típicos caminhos hollywoodianos ao acompanhar a jornada autodestrutiva de uma celebridade da música clássica, a regente Lydia Tár, encarnada pela maravilhosa Cate Blanchett (foi um pecado não ter levado o Oscar; aliás, foi um pecado TÁR sair de mãos abanando). Field pega desvios e, em vez de ofertar cenas à la cartão postal, em que tudo está dado, nos convida a explorar detalhes e a flagrarmos sua protagonista em momentos de intimidade, de vulnerabilidade, de crueldade. As várias interpretações conflitantes e os debates online sobre seu final só aumentam o fascínio pelo filme. (Canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay)
13) Terceira Guerra Mundial
De Houman Seyyedi. Shakib (Mohsen Tanabandeh), um sem-teto de meia-idade que mantém uma espécie de relacionamento com uma prostituta surda e muda (Mahsa Hejazi), vira operário em um canteiro de obras que vai se transformar no cenário de um filme sobre as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Por incidentes fortuitos e por cair na simpatia do diretor, ele acaba escalado para substituir o ator que faria o papel de Adolf Hitler. Com essas tintas, o cineasta iraniano faz um retrato das relações de poder, misturando as cores do absurdo e do abuso, e uma analogia dos campos de concentração nazistas, fazendo jus à epígrafe dos créditos de abertura: "A História não se repete, mas costuma rimar", uma frase atribuída ao escritor estadunidense Mark Twain. O roteiro é uma peça de ourivesaria: até os pequenos detalhes, supostamente desimportantes, vão ter um peso tremendo. (Foi exibido no Fantaspoa e pode ser visto gratuitamente na plataforma Sesc Digital)
14) Till: A Busca por Justiça
De Chinoye Chukwu. Lamentavelmente ignorado nas indicações ao Oscar, tem Danielle Deadwyler no papel de uma personagem histórica: Mamie Till-Mobley (1921-2003), que se tornou uma ativista dos direitos civis para os afro-americanos após a morte por linchamento de seu único filho, Emmett, 14 anos, em agosto de 1955, no Mississippi. A revolta e a dor compartilham as cenas de Till com a bela atuação de Deadwyler, que é sublinhada pela música composta pelo polonês Abel Korzeniowski, ora grave, ora emotiva. Na pele de Mamie, a atriz experiencia todos os estágios do luto de uma mãe que sabe o quanto seu filho sofreu (a sequência no necrotério é fortíssima) - um luto que vai transformar em luta. (Amazon Prime Video)
15) Tudo o que Respira
De Shaunak Sen. Um dos cinco competidores no Oscar de melhor documentário, registra a luta de dois irmãos — Saud e Nadeem — para, na companhia do amigo Salik, proteger e recuperar pássaros conhecidos como milhafres-pretos (black kite), afetados pela poluição que se abate sobre o céu e o ambiente de Nova Déli, na Índia. A cidade também sofre com uma escalada da violência de cunho religioso. Sem lançar mão de narração ou de entrevistas propriamente ditas, Tudo o que Respira estimula a reflexão sobre a relação do homem com a natureza — e com seus semelhantes — e consegue extrair imagens poéticas de ambientes degradados. (HBO Max)
P.s.: no apagar das luzes de 2023, entra em cartaz nesta quinta-feira (21), no Espaço Bourbon Country, o belíssimo A Menina Silenciosa (2022), filme irlandês que concorreu ao Oscar internacional. Não perca.