Estreia nesta quinta-feira (30) em três cinemas de Porto Alegre — CineBancários, Espaço Bourbon Country e GNC Praia de Belas — Pedágio (2023), o segundo longa-metragem da diretora e roteirista paulista Carolina Markowicz, a mesma de Carvão (2022). Esses dois títulos quase representaram o Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional. O anterior foi preterido por Marte Um (2022), de Gabriel Martins, e o novo, por Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho.
As duas "derrotas" não tiram os méritos nem dos filmes, nem de Markowicz, que, aos 40 anos, vem sendo apontada como um dos destaques da produção nacional. O currículo já era estrelado antes mesmo de começar a fazer longas. Pelo curta O Órfão (2018), ganhou a Palma Queer no Festival de Cannes, e, como cocriadora da série cômica Ninguém Tá Olhando (2019), venceu o Emmy Internacional.
Por Carvão, Markowicz conquistou a categoria de melhor roteiro no Festival do Rio e a de cineasta estreante no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Em setembro, ela se tornou a primeira cineasta do país a receber o troféu de talento emergente no Festival de Toronto, no Canadá, onde lançou Pedágio — que, na mostra do Rio, faturou quatro estatuetas: atriz (Maeve Jinkings), ator (Kauan Alvarenga), atriz coadjuvante (Aline Marta Maia) e direção de arte (Vicente Saldanha).
Tanto em Carvão quanto em Pedágio, Markowicz lança mão de poucos personagens e de diálogos coloquiais com humor ácido para retratar e verbalizar marcas do Brasil: a hipocrisia, a violência, a corrupção, o conservadorismo, a homofobia, o absurdo. A atriz principal é a mesma, Maeve Jinkings, brasiliense de 47 anos vista também nas séries Os Outros (2023) e DNA do Crime (2023). E a diretora também recruta novamente Aline Marta Maia, agora em um papel maior e com direito a pelo menos uma frase antológica:
— Casamento é uma coisa muito séria. A gente não pode estragar com certas verdades.
A trama se passa em Cubatão (SP), onde a protagonista, Suellen, trabalha como cobradora de um pedágio. Ela sai de casa ainda no breu, deixando na cama o namorado que seis meses atrás se instalou por lá como se fosse marido, Arauto (Thomás Aquino, que também formou par com Jinkings em Os Outros). Antes do serviço, quer fazer uma oferenda. É que Suellen não se conforma com a sexualidade do filho, o adolescente Tiquinho (Kauan Alvarenga), que adora gravar vídeos em que, com o rosto maquiado e usando plumas e paetês, dubla divas da música.
Suellen morre de vergonha — e até de raiva — quando uma colega de trabalho, Telma (Aline Marta Maia), mostra no celular um desses vídeos.
— Cê tá a um passo de virar traveco, é isso o que eu tenho de escutar — a mãe reclama com Tiquinho.
Em entrevistas, Carolina Markowicz já afirmou que "em pleno 2023, com todos adventos, tecnologias e avanços, chega a ser chocante a preocupação com quem o outro se relaciona sexualmente. O fosso conservador que vivemos nos últimos tempos serviu para deixar bem à vontade cada indivíduo que se achasse no direito de proferir críticas e até agressões à população LGBTQIA+. Além da violência, há práticas absurdas e patéticas, como as retratadas pelo filme, que parecem ser ficção, mas estão muito próximas à realidade surreal do brasileiro LGBTQIA+, gerando sequelas físicas e emocionais irreparáveis".
A prática absurda e patética à que ela se refere é a da "cura gay". Não falta amor pelo filho (e a recíproca é verdadeira), mas sim compreensão, então a protagonista de Pedágio resolve inscrever Tiquinho em uma "terapia de conversão" a ser ministrada por um pastor português (papel de Isac Graça). Só que Suellen não tem o dinheiro necessário. Daí, acaba se tornando informante de uma quadrilha que rouba relógios e joias dos motoristas na estrada para revender a cidadãos de bem.
Avançar mais na história de Pedágio é invadir a pista dos spoilers. Mas, para efeito de ilustração, dá para descrever uma das instruções do tal pastor aos participantes do curso: transformar pênis feitos com massinha de modelar em vaginas, e vice-versa. "Muda o córtex, tá comprovado", ele garante.
"Não há cura para ser gay porque não é doença", lembrou o psicólogo e psicanalista Mário Corso em uma coluna recente em GZH, motivada pelo suicídio da influenciadora Karol Eller, em outubro. Vale reproduzir alguns trechos do texto: "Dá para entender quem busca a cura gay. É um sujeito envergonhado com seu desejo sexual, que quer ajuda para conciliar o inconciliável — mas ele não sabe disso ainda. Aqui entra o lado perverso: aqueles que lhe vendem a ideia da possibilidade de mudar seu objeto de desejo. A postura correta é ajudá-lo a pensar o que fazer com isso. A decisão será dele. Não existe uma forma certa de lidar. Se uma pessoa quiser uma vida clandestina e fazer disso seu segredo, o dever do terapeuta se restringe a mostrar o preço psíquico que pagará pela alienação de si. Existe pressão social para o gay sair do armário e viver uma vida plena, uma vida instagramável. Mas é difícil para quem vive numa comunidade religiosa que não tolera esta condição".
Em outra entrevista, Carolina Markowicz fez uma importante ponderação: "É muito fácil você associar fundamentalismo religioso à homofobia, mas ela é tão poderosa que ultrapassa a religião. Quantas pessoas não frequentam a igreja, mas não querem ter um filho gay?".