O melhor filme que eu vi nas férias chama-se Jogo Justo (Fair Play, 2023) e é muito mais do que o thriller erótico sugerido por seu cartaz na Netflix, onde está disponível desde 6 de outubro. Estrelado por Phoebe Dynevor e Alden Ehrenreich, trata-se de um retrato tenso e aflitivo do conflito entre o empoderamento feminino e a fragilidade masculina nos ambientes de trabalho.
É o tipo de filme capaz de gerar conversas tanto nos escritórios quanto entre casais, com personagens que podem provocar tanto empatia quanto repulsa. Não à toa, a plataforma de streaming pagou US$ 20 milhões pelos direitos globais de distribuição e exibição após a calorosa recepção no Festival de Sundance, nos EUA, em janeiro, deste que é o primeiro longa-metragem de Chloe Domont, diretora de episódios de seriados como Ballers, Clarice e Billions.
A própria Domont escreveu a trama protagonizada pela inglesa Dynevor, a Daphne da série Bridgerton (2020-), e pelo estadunidense Ehrenreich, que protagonizou Han Solo: Uma História Star Wars (2018) e foi visto recentemente como um dos coadjuvantes de Oppenheimer (2023). Eles interpretam Emily e Luke, que, na cena de abertura, são flagrados em um momento de paixão e reciprocidade: durante uma festa de casamento, dão uma escapada para transar no banheiro; quando ele faz sexo oral, ela descobre que ficou menstruada.
O sangue que untou os lábios de Luke mancha o vestido de Emily, tornando impossível retornar à celebração. Mas a situação não causa nojo, nem mesmo constrangimento para o casal: estão tão sintonizados um no outro, que caem na risada. E ali mesmo ele propõe o casamento, prontamente aceito e depois, já em casa, comunicado por ela a seus pais.
Na manhã seguinte, descobrimos que esse belo romance precisa ser vivido às escondidas, a ponto de Emily e Luke irem separadamente para o mesmo endereço: as regras da empresa de investimentos onde trabalham não permitem que empregados se envolvam amorosamente.
O mercado financeiro é um cenário de altos riscos e alta competitividade, como já vimos, por exemplo, em Wall Street: Poder e Cobiça (1987) e O Lobo de Wall Street (2013). Mas, ao contrário desses dois filmes, Jogo Justo não opera em alta velocidade nem em alta escala. Seu ritmo e também seus dilemas remetem a outro título sobre a ganância e a brutalidade inerentes ao capitalismo, O Sucesso a Qualquer Preço (1992), ambientado em uma corretora de imóveis onde o gerente estabelece uma concorrência interna que vale um Cadillac ou a demissão.
Em Jogo Justo, o que está em disputa é um cargo de analista sênior. Emily ouve um rumor de que Luke será promovido, os dois chegam a comemorar e fazer planos, mas é ela que acaba escolhida pelo chefe, Campbell (Eddie Marsan, da série Ray Donovan, deliciosamente cínico e implacável). Agora, ela não só vai ganhar mais do que o futuro marido: também vai mandar nele no trabalho.
A decisão altera drasticamente a dinâmica do casal. Luke passa a ser frio e distante com Emily. Ela tenta manter o fogo aceso e até ajudá-lo profissionalmente, o que machuca ainda mais o ego do noivo, que, como apontou a psicóloga Jamyly da Silva Rodrigues nas suas redes sociais, passa a revidar com estratégias psicológicas (desde o desvio da atenção de seus próprios erros até o gaslighting, a manipulação que distorce a realidade da vítima). E num ambiente majoritariamente machista e predatório, Emily começa a mimetizar o comportamento dos colegas que contam histórias de violência sexual como se fossem meras anedotas.
Mimetizar ou se identificar? Esse é um dos trunfos de Jogo Justo: embora escrito e dirigido por uma mulher, embora fique claro que o homem é quem não está sabendo lidar com a situação, sendo ora infantil, ora temível, Emily também toma atitudes reprováveis, e há pelo menos um fundo de verdade nos ataques de Luke. A insinuação de que ela só foi promovida para servir de "vitrine" ecoa em uma reprimenda explicitamente misógina de Campbell: "dumb fucking bitch" (ou vadia idiota).
Outro trunfo de Jogo Justo é seu final que vem dividindo opiniões — inclusive ou justamente por dividir opiniões. Detalhá-lo seria cometer um grave spoiler, mas pode-se dizer que a perturbação provocada talvez denuncie uma visão estereotipada do comportamento de homens e mulheres. Nos relacionamentos, assim como nos negócios, nem sempre o jogo é justo.