Existe muito preconceito contra o cinema nacional. Tanto de parte do público — vide os comentários que compilei à época da estreia de 7 Prisioneiros (2021) — quanto dos exibidores, que confinam os filmes brasileiros a poucas salas e poucos horários: segundo um levantamento apresentado pelo diretor Aly Muritiba, de Deserto Particular (2021) e da série Cangaço Novo (2023), de cada cem sessões no país, 87 são de produções estrangeiras. Essa combinação explosiva é agravada pelo gargalo na distribuição, que se torna canibalesca: não raro, quatro, cinco, seis títulos são lançados na mesma quinta-feira, disputando os poucos espectadores ou correndo o risco de passarem despercebidos. Como resultado, até obras que comprovam seu forte apelo popular ao se tornarem sucessos de audiência apresentam números inferiores aos de fracassos hollywoodianos por aqui. Em um post no Facebook, o crítico Francisco Carbone apontou: Nosso Sonho (2023), a cinebiografia da dupla carioca de funk Claudinho & Buchecha, vendeu no total mais de 500 mil ingressos, praticamente a mesma bilheteria de As Marvels (2023) apenas em seu primeiro fim de semana de exibição.
Um dos preconceitos é o de que o cinema brasileiro não sabe fazer filme de ação (a despeito de títulos como 2 Coelhos, lançado em 2012 e disponível na HBO Max, na Netflix e no canal Telecine). É verdade que, na comparação com Estados Unidos, Coreia do Sul, China e França, ainda engatinhamos no gênero. Mas O Sequestro do Voo 375 (2023) leva a produção nacional às alturas, literalmente e figurativamente.
Em cartaz em nove cinemas de Porto Alegre — Cineflix Total, Cinemark Barra, Cinemark Ipiranga, Cinemark Wallig, Cinépolis João Pessoa, Espaço Bourbon Country, GNC Iguatemi, GNC Moinhos e GNC Praia de Belas —, é a versão ficcional de um caso real que poderia ter afetado profundamente a história do Brasil.
ATENÇÃO: se você não conhece o episódio, faço o alerta de que o texto poderá conter alguns spoilers do filme (mas nada de detalhes sobre o desfecho).
Para reconstituir os acontecimentos do dia 29 de setembro de 1988, a produtora Joana Henning e o diretor Marcus Baldini, de Bruna Surfistinha (2011) e da série O Rei da TV (2022-2023), contaram com um orçamento entre R$ 15 milhões e R$ 25 milhões — bastante superior à média de um filme nacional, que fica na casa dos R$ 3,5 milhões a R$ 4 milhões. O dinheiro garantiu uma boa recriação de época (vide os figurinos e os carros) e, principalmente, do Boeing 737 usado pela Vasp, a extinta companhia aérea estatal paulista. No estúdio Vera Cruz, em São Bernardo do Campo (SP), foram construídas duas estruturas de avião para filmar as cenas que reproduzem as manobras aéreas e os momentos de tensão — sublinhados pela eficiente montagem de Lucas Gonzaga e Gustavo Vasconcelos e pela ótima trilha sonora de Plínio Profeta.
Na abertura de O Sequestro do Voo 375, uma espécie de cinejornal ilustrado por imagens de arquivo dá o contexto histórico. A narração relembra o fim da ditadura militar, a eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência, a sua morte antes da posse, a ascensão do vice, José Sarney, e a instabilidade econômica que culminou na hiperinflação.
A partir daí, o filme escrito por Lusa Silvestre e Mikael de Albuquerque com base em uma extensa pesquisa de Constâncio Viana adota o ritmo de thriller aéreo de títulos semelhantes, como Força Aérea Um (1997), Voo United 93 (2006) e 7500 (2020). Demitido de seu emprego como tratorista, sem dinheiro para mandar à família, o maranhense Raimundo Nonato Alves da Conceição (interpretado por Jorge Paz, o Jorge de Marighella e o Duzentos de Cangaço Novo) resolve sequestrar um avião e jogá-lo no Palácio do Planalto para matar Sarney. Como naqueles tempos detectores de metais e aparelhos de raio-X ainda não faziam parte dos procedimentos obrigatórios de segurança, ele consegue embarcar no Aeroporto de Confins, em Minas Gerais, munido de um revólver calibre 32. A bordo do voo 375 da Vasp que transportaria 135 passageiros ao Rio, logo após a decolagem saca sua pistola e obriga o comandante Fernando Murilo (papel de Danilo Grangheia, o Hércules da novela A Lei do Amor e o Walter Clark de Hebe) e o copiloto Salvador Evangelista (César Mello, de O Pastor e o Guerrilheiro e do seriado Negociador) a desviarem a rota, tendo Brasília como novo destino.
Sem alongar a duração (são 107 minutos), O Sequestro do Voo 375 alterna as sequências no avião — um cenário por excelência para o perigo claustrofóbico — com as tratativas das autoridades para impedir a concretização do atentado e para deter Nonato. Entre os coadjuvantes, estão os fictícios Sobral Quintanilha, chefe da Casa Civil encarnado por Claudio Jaborandy, e brigadeiro Bastos (Adriano Garib), ministro da Aeronáutica. Os bastidores políticos dão um pouco de molho a uma narrativa que se concentra nas ameaças do sequestrador, nas reviravoltas da trama e nas acrobacias do piloto — uma delas bastante arriscada e até hoje debatida no mundo da aviação (não vou descrevê-la para não tirar o fator surpresa de quem desconhece a história).
Mas a ação não seria tão envolvente se o drama não contasse com um bom elenco. Jorge Paz empresta desespero e intensidade a Nonato. Roberta Gualda aproveita cada instante como a controladora de tráfego aéreo Luzia. E Danilo Grangheia, que já havia brilhado nas breves participações da cinebiografia de Hebe Camargo, agora tem um filme inteiro para chamar de seu. Ator paulista de 46 anos egresso do teatro, onde também dirigiu espetáculos, ele cativa na pele do comandante Murilo, evitando resvalar para o heroísmo de prateleira — ainda que o diretor Marcus Baldini, após um momento de clímax, invista num clichê do gênero que quebra um interessante desconforto.
Onde O Sequestro do Voo 375 derrapa feio é apenas nos créditos finais. Depois de relatarem o destino dos principais personagens, os letreiros informam que revistas sobre o caso do avião da Vasp foram encontradas nos esconderijos de Osama Bin Laden, sugerindo que a ação de Nonato teria sido uma referência para os ataques terroristas de 2001 a Nova York e Washington. É quase como se o filme considerasse motivo de orgulho nacional a inspiração para a tragédia do 11 de Setembro.