Tudo bem que era segunda-feira de noite, mas é um pecado que só estivessem eu e mais um espectador na única sessão diária de Seguindo Todos os Protocolos (2022) no Espaço Bourbon Country, às 20h30min — em cartaz desde quinta-feira (30), o filme escrito, dirigido e protagonizado pelo pernambucano Fábio Leal também pode ser visto até esta quarta-feira (6) no CineBancários, às 15h. No dia 14, deve entrar na programação da Cinemateca Capitólio.
Uma característica do atual mercado cinematográfico nacional ajuda a explicar a mísera audiência em um título que trata de dois assuntos campeões de popularidade: sexo e pandemia — aliás, é sobre sexo na pandemia. Às vezes, pencas de longas-metragens brasileiros são despejadas nos cinemas nas quintas-feiras, quando ocorrem as estreias no circuito. Na última semana, foram quatro os lançamentos: Seguindo Todos os Protocolos, Carro Rei, de Renata Pinheiro, A Colmeia, de Gilson Vargas, e As Verdades, de José Eduardo Belmonte. Restritos a poucas salas e a poucos horários, mesmo um filme massa (para usar uma gíria nordestina) acaba, não raro, passando despercebido do grande público.
Há de se levar em conta, também, um certo preconceito que existe contra a produção nacional. Lembro de quando, em novembro de 2021, 7 Prisioneiros estreou na Netflix. O filme logo se tornou tema de enorme polarização em um grupo do Facebook que reúne cerca de 550 mil usuários brasileiros da plataforma. Uns disseram coisas do tipo "Brasil só faz filme para ganhar aplauso de crítica metida a intelectual, por isso a maioria é fracasso de público" — ignorando que, na verdade, hoje o Brasil faz filme de todos os tipos, inclusive para serem sucesso de público, como evidenciam as comédias Minha Mãe É uma Peça 3 (2019), com 11,6 milhões de espectadores, e Minha Vida em Marte (2018), com 5,3 milhões. E mesmo obras com forte teor político têm retorno nas bilheterias: Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010) vendeu 11,1 milhões de ingressos, Bacurau (2019) ficou mais de 10 semanas em cartaz, Marighella, que saiu no ano passado, e Medida Provisória, deste ano, estão entre as três produções brasileiras mais assistidas desde o início da pandemia.
Outro comentário recorrente era: "Desde quando filme brasileiro é bom!?". Desde Limite (1931), de Mário Peixoto, talvez? Ou quem sabe desde O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, que conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes? Vão dizer que o diretor era argentino de nascença, que tinha coprodução estadunidense e que o elenco contava com um ator de Hollywood (William Hurt) e um porto-riquenho (Raúl Julia), mas O Beijo da Mulher-Aranha (1985), de Héctor Babenco, é um filme brasileiro que disputou a principal categoria do Oscar. Falando em Oscar, que tal Central do Brasil (1998), que valeu a Fernanda Montenegro a primeira indicação latino-americana à estatueta de melhor atriz e a única para uma interpretação em português? E como esquecer de Cidade de Deus (2002), que concorreu aos prêmios de melhor direção (Fernando Meirelles), roteiro adaptado, fotografia e montagem?
Seguindo Todos os Protocolos é um dos melhores filmes de 2022, não importando a nacionalidade. Talvez seja também o melhor retrato ficcional da vida sob o signo do coronavírus — e, em que pese a duração de apenas 74 minutos, o mais completo sobre o cenário brasileiro. Estão lá o sujeito amedrontado pela possibilidade de contaminação e rigoroso na sua quarentena e os amigos cancelados por terem ido à praia. Estão lá as conversas via Zoom, o uso de antidepressivos, os aplicativos para meditação e os vídeos fitness. Estão lá o biólogo Atila Iamarino lamentando as 2,8 mil mortes daquele que, até então, era o dia mais letal da covid-19 no país (o trágico recorde de 4.249 viria a ser estabelecido no início de abril de 2021) e a microbiologista Natalia Pasternak passando a carraspana ao vivo após uma reportagem de TV sobre o uso do humor contra pessoas que não seguiam protocolos sanitários: "Eu estou um pouco passada com o que eu escutei agora. Eu escutei 'humor', 'leveza' e 'evitar o estresse'. Então, eu não posso falar para o outro fazer a coisa certa porque eu vou ficar estressada? Por que ele pode se ofender? Tem gente morrendo! Não tem humor, não tem leveza, eu não tenho que pedir permissão do outro para dizer que ele tem que usar máscara, que ele tem que fazer a coisa certa". O presidente Jair Bolsonaro também é citado, em um momento de desabafo do personagem principal, que diz já não dar conta de si mesmo diante do medo de contrair covid-19 e da solidão provocada pelo confinamento.
Rodado quase todo em um apartamento de Recife, Seguindo Todos os Protocolos não é o primeiro filme a abordar os conflitos psicológicos decorrentes dessa situação e o impacto na vida amorosa das pessoas. Antes vieram, por exemplo, Malcolm & Marie (2021), do estadunidense Sam Levinson, e A Nuvem Rosa (2021), da gaúcha Iuli Gerbase. Mas há três diferenças fundamentais. Esses dois títulos focavam em um casal heterossexual, enquanto Fábio Leal retrata os perrengues de um cara solteiro e homossexual: como é que se faz para transar seguindo todos os protocolos? E o diretor pernambucano também se permite ser mais engraçado e despudorado — convém avisar o leitor mais casto: não faltarão cenas com pênis em destaque e referências a práticas sexuais, mais até do que no recente Pleasure (2021), que desnuda a indústria pornô.
Poderíamos dizer que há uma quarta diferença significativa, personificada pelo próprio Leal, que interpreta o protagonista — Francisco, o Chico. Ao contrário de Malcolm & Marie e de A Nuvem Rosa (no fundo, de muitos outros filmes, seja qual for o assunto), Seguindo Todos os Protocolos tem um personagem cuja corpulência não está em debate nem é alvo de piada ou motivo de vergonha. Como bem resumiu o crítico Bruno Ghetti na Folha de S.Paulo, o diretor, roteirista e ator, "num misto de narcisismo e posição política, apresenta uma fisicalidade não normativa como merecedora de prazer". (Esse tema, o da insatisfação com o corpo, Fábio Leal abordara em um curta-metragem que dirigiu e estrelou em 2008, Reforma, vencedor dos prêmios Candango de melhor ator e melhor roteiro no Festival de Brasília.)
O prazer, primeiro Chico busca em um site de pornografia, depois em um encontro virtual com Ronaldo (Marcus Curvelo), de quem não vê presencialmente o sovaco já há muitos meses, agora que voltou a Salvador, mais adiante com um motoqueiro de app (Paulo César Freire) ou com um médico (Lucas Drummond). Na cena com Ronaldo, Seguindo Todos os Protocolos faz um inventário bem-humorado de dilemas suscitados pela pandemia e de algumas questões nacionais mais profundas, incluindo o colorismo e a hipersexualização do corpo negro.
Ao longo do filme, o que começou em tom mais de comédia vai oferecer passagens dramáticas ou mesmo tensas e momentos tocantes de romantismo e de erotismo, até desaguar em uma sequência absolutamente poética: um passeio motociclístico noturno embalado por Amor e Sina, belíssima canção composta por Luiz Amaro Fortes que, na voz inebriante de Sophia Ardessore, diz assim: "Sou estrada deserta e lua cheia / sou paixão que desperta e que incendeia / sou a rota mais certa pro seu bem querer / Rodeando pela noite sem razão de ser / sou ninguém e todo mundo, / eu e você / Pelas bombas que caem na fronteira / pelas sombras, pelas lombras, pelas eleições / entre os nossos lençóis e as estações / Sou verdade e mentira / sou a paz e sou a ira / seu amor e sua sina / a flor e o buquê / Rodeando pela noite sem razão de ser / sou ninguém e todo mundo, / eu e você / Pelas belas manhãs que nunca chegam / pelas celas, pelas velas, pelas orações / sou a voz dos malditos, dos benditos, dos milhares, dos milhões".