* O escritor Jeferson Tenório foi consultor desta e de outras pautas relacionadas à Semana da Consciência Negra.
Quem está por fora do debate sobre questão racial pode ficar confuso ao ouvir expressões como "lugar de fala" e "racismo estrutural". São termos muitos usados pelos movimentos sociais e que acabam sendo analisados pela sociologia, área do conhecimento que busca entender fenômenos e comportamentos como o próprio racismo, por exemplo.
Mas também são conceitos que, cada vez mais, extrapolam a academia e estão na boca de todos que buscam compreender o mundo. No Dia da Consciência Negra, celebrado neste sábado (20), GZH consultou duas mulheres negras para explicar algumas dessas expressões.
Uma delas é a socióloga Nina Fola, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), integrante dos Grupos GeAfro e LUTA; a outra é a poeta slammer Tamires Prestes de Matos Tuchtenhagem, mestranda do Programa de Pós-Graduação da PUCRS, além de professora de Português e Literatura na rede pública de ensino.
Racismo estrutural
Nina Fola: forma abstrata e ampla para entender o racismo, sem tornar particular, deixando de entendê-lo como um fenômeno que acontece somente entre brancos e negros, mas de uma forma mais coletiva e que influencia nas estruturas sociais. Não basta ter seu negro de estimação, seu amigo negro, isso não acaba com o racismo. Não se acaba com o racismo nas relações afetuosas inter-raciais. O racismo se revela nas instituições, nas classes sociais, no desenvolvimento das subjetividades das pessoas e, percebendo isso, necessitamos de combates antirracistas na mesma dimensão.
Tamires Tuchtenhagem: quando se pensa em racismo, as pessoas pensam em algo escrachado, mas, na maioria das vezes, o racismo é velado. Exemplificando: quando um branco atravessa a rua ao ver uma pessoa negra, quando o branco subestima a inteligência de uma pessoa por ela ser negra. O racismo estrutural não só constitui ações conscientes, mas também inconscientes. São atos racistas que as pessoas cometem sem que se perceba, porque estão internalizados.
Racismo recreativo
Nina Fola: é uma categoria do racismo que denuncia o quanto algumas piadas são racistas e que são sempre amparadas pelo senso comum de que é somente uma brincadeira. São brincadeiras de cunho pejorativo que se referem à cor e aos traços das pessoas negras. Portanto é uma ferramenta de permanência e atualização do racismo. Quando alguma pessoa negra denuncia o desconforto com esse tipo de racismo, ainda é acusada de não ter bom humor, ou de ver racismo em tudo. De fato está, porque isso é estrutural e as piadas racistas são grandes instrumentos de revelação desse preconceito.
Tamires Tuchtenhagem: é um tipo de humor, mas que, na verdade, é racista. Por exemplo: lá no Big Brother (BBB 2021), o Rodolffo fez uma piada comparando o cabelo do João, que é black power, com uma peruca. E depois, usa-se o argumento de que é só brincadeira. A sociedade, de modo geral, se acostumou com esse tipo de piada, mas ela vai criando uma ferida na pessoa negra que é difícil de cicatrizar.
Colorismo:
Nina Fola: o colorismo revela que há diferença de tratamento e discriminação racial de acordo com o tom de pele. A pessoa mestiça, que tem pele clara e traços "embranquecidos", tais como olhos claros, nariz fino e cabelos encaracolados ou lisos, é percebida como uma pessoa "melhorada" geneticamente, passível de circular com mais permissão nos meios da branquitude. Essa distinção gera maior desigualdade e vulnerabilidade social às pessoas pretas.
Tamires Tuchtenhagem: é um conceito criado por Alice Walker (escritora e ativista norte-americana) que diz que, quanto mais retinto é o negro, mais exclusão e discriminação ele vai sofrer.
Lugar de fala
Nina Fola: conceito que socializa a perspectiva do ponto de vista, mas que abre para todos os seres críticos a possibilidade de falar sobre determinados assuntos. Na perspectiva racial, as pessoas negras têm um outro lugar de fala sobre como enxergam as desigualdades. Por exemplo: nós, negros, sabemos que a maioria de nós não é ladrão, e nesse contexto não criminalizamos pessoas racializadas somente pelo seu estereótipo. O lugar de fala exige um lugar de escuta, desestabilizando a hegemonia branca do saber.
Tamires Tuchtenhagem: a Djamila Ribeiro (filósofa e um dos principais nomes do feminismo negro no país) trouxe esse conceito para o Brasil. Ela diz que lugar de fala não é representatividade. Não quer dizer que um branco não possa falar sobre racismo, mas ele precisa falar do racismo do lugar dele como branco, considerando que são os negros que passam por discriminação. Por exemplo: agora durante a Consciência Negra, nas discussões sobre racismo, o protagonismo é do negro. O branco até pode estudar sobre racismo, mas não sente isso na pele. O negro, mesmo que não estude conceitos, sabe o que é racismo porque ele vive o racismo.
Não quer dizer que um branco não possa falar sobre racismo, mas ele precisa falar do racismo do lugar dele como branco"
TAMIRES TUCHTENHAGEM, SOBRE "LUGAR DE FALA"
Feminismo negro:
Nina Fola: as mulheres negras, em suas lutas por justiça de gênero, têm vários problemas a enfrentar: primeiro que não lutamos por igualdade salarial nas mesmas funções de trabalho que os homens, pois o trabalho para nós é uma oferta sempre muito desigual. Viemos como ferramentas de trabalho para as Américas, escravizados, e ainda somos vistos para executar apenas trabalhos domésticos. E isso, dentro do movimento feminista clássico, não tem lugar, já que as pautas raciais não são consideradas importantes. Por isso, as mulheres negras feministas organizam há muitas décadas esse enfrentamento por dentro do movimento feminista, e isso inclui o fim do genocídio negro que se acomete principalmente em homem.
Tamires Tuchtenhagem: quando as mulheres brancas saíram às ruas para lutar pelos seus direitos, estavam considerando uma categoria universal de mulher. Mas as mulheres negras não estavam lá lutando: estavam cuidando da casa e dos filhos dessas mulheres brancas. A Audre Lorde (escritora e ativista americana) diz que não existe uma categoria universal de mulher, porque as demandas da mulher branca são diferentes das necessidades de uma mulher negra e periférica. A Simone de Beauvoir (filósofa e escritora francesa) diz que a mulher negra é "o outro do outro", porque a sociedade já coloca o negro como o outro, então a mulher negra, não sendo nem homem, nem mulher branca, é o outro do outro. Enquanto as mulheres brancas sofrem com o machismo, as mulheres negras sofrem com o machismo e com o racismo - sofrem duplamente. As mulheres negras lutam pelo direito de existir, porque a grande maioria das mulheres que morrem no Brasil é negra.
É uma categoria do racismo que denuncia o quanto algumas piadas são racistas e que são sempre amparadas pelo senso comum de que é somente uma brincadeira.
Nina Fola, sobre "racismo recreativo"
Privilégio branco:
Nina Fola: é uma categoria que incentiva a reflexão, principalmente de pessoas brancas, sobre sua posição de privilégio social. Fazendo essa autocrítica, é possível perceber um privilégio dos brancos em ações cotidianas, como estudar em universidade pública em turno matinal. Essa autocrítica detona crenças ideológicas como a meritocracia, por exemplo. Sabemos que o ganho pessoal de alguém não depende somente de seu desempenho individual, mas que há interferências familiares até sociais, passando por econômicas e subjetivas.
Tamires Tuchtenhagem: a pessoa branca já é privilegiada apenas por ser branca, porque o negro, ao chegar em algum lugar, a sua cor chega antes. Ser branco já é um privilégio. A maioria das pessoas brancas estuda em boas escolas e consegue estudar em universidades públicas, consegue se dedicar mais aos estudos. Por outro lado, a maioria das pessoas negras precisa trabalhar durante o dia e estudar à noite.