Inconformados com a situação dos negros no Brasil, quatro jovens propuseram, na Porto Alegre de 1971, que houvesse um dia no calendário para a população refletir sobre a questão racial. Foi na capital gaúcha que eles idealizaram, há 50 anos, o Dia da Consciência Negra, data que virou referência em todo o país.
Antônio Carlos Côrtes, Oliveira Silveira, Vilmar Nunes e Ilmo da Silva, fundadores do grupo Palmares, não concordavam com o 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, e consideravam que 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, simbolizava com justiça a luta dos negros pela liberdade total.
Em um 20 de novembro, eles foram ao clube Marcílio Dias, no bairro Menino Deus, conversar com cerca de 20 pessoas sobre a necessidade de parar de celebrar o dia em que Princesa Isabel assinou a Lei Áurea. O argumento era de que, depois daquele ato, os negros até deixaram de ser formalmente escravizados, mas foram jogados em um limbo, sem garantia de trabalho e sem incentivo para os estudos.
Único vivo dos quatro idealizadores do Dia da Consciência Negra, Côrtes, hoje com 72 anos, ainda fala com ímpeto sobre o descaso ao qual os negros foram relegados a partir de 13 de maio de 1888.
— Os negros que construíram a economia do Brasil, que colaboraram na indústria do café, da cana-de-açúcar, das charqueadas, seriam jogados na rua da amargura como vagabundos. Então nós defendemos a tese de que teríamos que dizer não ao 13 de maio de Princesa Isabel e sim ao 20 de novembro de Zumbi dos Palmares, porque lá no Quilombo dos Palmares houve uma república de negros e índios libertos — recorda, em conversa por telefone com GZH.
Advogado, radialista e um dos maiores nomes do movimento negro no Brasil, Côrtes também lembra que, poucos anos após confabular com os amigos, o jornalista Alexandre Garcia, então correspondente do Jornal do Brasil em Porto Alegre, escreveu, em um dos maiores veículos do país, sobre a ideia dos quatro jovens negros.
- Foi como um rastilho do pólvora. Todas as sociedades negras do Brasil passaram a nos buscar para ter informações.
Estudiosa do legado de Oliveira Silveira e do grupo Palmares, a professora Sátira Machado, docente de Culturas Afro-gaúchas da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), conseguiu o recorte do jornal. O título da reportagem é contundente: "Negro no Sul não quer mais Abolição como data da raça".
Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU), com sede em São Paulo, faz um manifesto aderindo à proposta do Palmares.
- Todo mundo começa a abandonar o 13 maio e o 20 de novembro começa a ter repercussão nacional - diz Sátira.
Sem feriado, sem espaço
Passados cinquenta anos, o Dia da Consciência Negra entrou para o calendário por força de uma lei federal, promulgada em 2011 por Dilma Rousseff, mas, contrariando um desejo dos movimentos sociais, ainda não virou feriado nacional.
Em 2015, um projeto de lei do então vereador Delegado Cleiton transformando o 20 de novembro em feriado de Porto Alegre foi aprovado pela Câmara e sancionado pelo prefeito José Fortunati, mas foi barrado na Justiça. Atendendo a uma ação movida pelo Sindicato dos Lojistas do Comércio (Sindilojas), o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) entendeu que a lei era inconstitucional.
Logo após a decisão, o presidente do Sindilojas, Paulo Krause, disse que os comerciantes, já afetados pelo Dia dos Finados e pela Proclamação da República, seriam ainda mais prejudicados caso houvesse um terceiro feriado no mês de novembro.
Filha de Oliveira Silveira, poeta, professor e um dos maiores ativistas negros do país, morto em 2009, Naiara Silveira, 52 anos, não entende como uma data que foi criada em Porto Alegre e que entrou para o calendário nacional não é razão suficiente para que a cidade paralise suas atividades por ao menos um dia.
— Não é feriado, sendo que a data aqui nasceu. Não entendo o porquê. Os comerciantes já justificaram dizendo que têm prejuízos, porque há muitos feriados para se comemorar. É um argumento que não me convence. O 20 de novembro nasceu aqui, é porto-alegrense. Como uma data adotada por outros estados não é valorizada onde nasceu? — questiona ela.
Acolhendo um pedido da militância negra gaúcha, o governador Eduardo Leite editou um decreto estipulando que 2021 será o ano do Cinquentenário do 20 de novembro. A medida é simbólica: não chega a criar um feriado em âmbito estadual, mas haverá uma série de atividades, com apoio da Secretaria Estadual de Cultural (Sedac), incentivando que a população reflita por alguns dias sobre a questão racial.
A programação inclui o Festival Cine Negro em Ação, com exibição de filmes produzido por negros na Casa de Cultura Mario Quintana, entre os dias 20 e 27 de novembro, e a exposição Palmares não é só um, são milhares, que pode ser conferida a partir de 30 de novembro no Museu Antropológico, sediado no Memorial do Rio Grande do Sul.
— O importante é a gente firmar essa data como nossa, e que todos os instrumentos de cultura do Estado fizeram uma programação específica — diz Sandra Maciel, presidente da Comissão do Cinquentenário do 20 de Novembro, conselheira estadual de cultura e ativista do movimento negro.
Naiara também questiona o fato de o Rio Grande do Sul não ter um museu ou um espaço cultural que conte a história dos negros no Estado. Em São Paulo, por exemplo, foi criado, em 2004, o Museu Afro Brasil, que fica localizado no parque mais famoso da cidade, o Ibirapuera. Salvador, na Bahia, tem o Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) desde 1974.
- Já onde começou o Dia da Consciência Negra, não tem nada. Porto Alegre não tem feriado no dia 20 de novembro, não tem uma sede que possa servir de base para alguém que queira pesquisar sobre a nossa história - critica.
Neste ano, Naiara fundou, por conta própria, o Instituto Oliveira Silveira, que armazena toda a obra do pai - o espaço, no entanto, ainda não tem uma sede própria. Todo o acervo fica na casa da professora Sátira Machado, em Viamão.
Côrtes tem a esperança de que, em breve, a sociedade entenda a contribuição dos negros para a construção do Brasil. Também explica que, quando os quatro amigos lançaram a campanha pelo 20 de novembro no longínquo ano de 1971, a intenção era de que houvesse uma comunhão entre brancos e negros, e não ainda mais divisão.
— Eu sempre enfatizo que a nossa luta não é contra os brancos, é a favor dos negros. Estamos brigando para que a nossa cultura seja respeitada — diz.