"É som de preto / De favelado / Mas quando toca / Ninguém fica parado (tá ligado)". A canção Som de Preto, apesar de não ter sido escrita por Claudinho e Buchecha (mas por Amilcka e Chocolate), resume bem a experiência de assistir à cinebiografia da dupla de garotos de Niterói que conquistou o Brasil no início dos anos 1990, justamente cantando funk. Não há como ficar parado durante as duas horas de duração de Nosso Sonho, filme sobre Claudinho e Buchecha que chegou aos cinemas brasileiros nesta semana, embalado pelas irresistíveis canções da dupla — entre elas a que dá título à produção.
O longa cumpre bem a função de narrar a trajetória dos artistas até o estrelato, mas emociona mesmo quando foca a amizade dos dois. Isso já nos primeiros minutos, que mostram Claudinho e Buchecha ainda na infância, interpretados por Vinícius "Boca de 09" e Gustavo Coelho, brincando em um riacho perto da favela onde moravam. Até que Buchecha se afoga e é salvo pelo amigo. "Ali o Claudinho me salvou pela primeira vez", diz a voz do ator Juan Paiva, que interpreta Buchecha na fase adulta.
Juan atua também como narrador do filme, cujo roteiro foi construído a partir da visão de Buchecha sobre a história da dupla. Claudinho, que morreu em 2002, vítima de um acidente de carro, é interpretado na idade adulta por Lucas Penteado. O músico aparece na trama quase como uma entidade, alguém que está sempre perto quando o amigo precisa e que cativa pelo carisma e o jeito leve de encarar a vida. É uma forma bonita de representação.
Os traços da personalidade de Claudinho são acentuados pela atuação de Lucas Penteado, que por vezes nem parece estar atuando — a não ser quando reproduz a dicção do músico, que tinha língua presa. Quem acompanha a trajetória do jovem ator, um dos participantes do Big Brother Brasil 21, percebe que existem semelhanças entre ele e seu representado. Foi algo notado, inclusive, por Buchecha. Ele procurou o diretor Eduardo Albergaria para alertar que Penteado tinha a "energia bagunceira e descompromissada" de Claudinho, enquanto Juan tinha personalidade parecida com a sua, mais introvertido. Os dois já estavam escalados para o filme, mas em papéis trocados: Juan interpretaria Claudinho, Penteado viveria Buchecha. Os papéis foram, então, ajustados.
Eduardo Albergaria considera que esta foi "a decisão mais importante" que tomou durante a produção de um filme. E Penteado diz se identificar com a história dos dois, mas reconhece que tem bastante em comum com Claudinho.
— Eu me vejo muito neles, pois são pessoas que vieram de baixo, saca? Eles construíram o presente para que houvesse um futuro — explica o ator, avaliando também sua semelhança com Claudinho. — Temos em comum a energia do sonho, aquela energia do jovem periférico que não tem tempo de reclamar do que está ruim, porque precisa correr para resolver. Ele foi esse cara que um dia chegou e falou: "Irmão, eu sou artista". Foi lá, subiu no palco e encarou a plateia. Não tinha tempo ruim com ele. Podia ser uma plateia que odiasse funk, mas quando aquele moleque subia no palco, todo mundo amava.
O magnetismo do artista é algo que fica evidente no longa. Assim também ocorre com a autoconfiança dele, que foi o idealizador da dupla, pois convenceu Buchecha de que os dois tinham potencial para cantar e fazer sucesso. Mas ao mesmo tempo em que trabalha bem as características de Claudinho, o filme deixa de abordar a intimidade dele, sua família e seus pensamentos mais profundos, algo a que sem dúvida seria interessante assistir.
Em contrapartida, Nosso Sonho explora bastante o contexto familiar de Buchecha, sobretudo a relação conturbada dele com o pai — interpretado por Nando Cunha. E embora seja natural que a história de Buchecha se sobressaia, uma vez que ele é o narrador, há certo exagero neste ponto. Muitas são as cenas dedicadas ao conflito entre pai e filho, que poderia ter tido seu arco resumido para dar lugar ao que interessaria mais ao espectador.
O próprio Buchecha cita uma "licença poética" nas sequências que abordam seu pai, mas considera que o roteiro foi coerente.
— Nem tudo que é trazido para dentro de um filme aconteceu daquela forma. O cinema tem uma liberdade poética, mas eu acho que ela foi usada de maneira justa no filme. Fiquei muito confortável com o que vi — diz o músico. — Meu relacionamento com meu pai nunca foi de agressão, nunca nos encostamos um dedo. A gente discutia, discordava um do outro, mas aí eu ficava quieto, ele ficava quieto... Era assim.
Resumir o enredo familiar possibilitaria ao filme abordar melhor alguns aspectos que fazem de Claudinho e Buchecha figuras seminais na música popular brasileira. Entre eles está a definição da dupla sobre o tipo de letra que queriam cantar. Foi um consenso que parece ter existido entre os dois, mas que não fica explícito em Nosso Sonho.
— Naquela época, as letras de funk falavam muito dos problemas sociais. E tudo bem, pois era a realidade que a gente vivia. Mas eu e o Claudinho escolhemos falar de amor — lembra Buchecha. — Nós éramos dois meninos pretos. A gente sabia que o nosso povo já trazia uma carga pesada, então, não queríamos abordar isso na nossa música também. Queríamos fazer algo que fosse leve, que trouxesse paz, e eu acho que a gente conseguiu.
Outro ponto que poderia ter sido melhor explorado, pois desperta curiosidade no público, é a origem das canções da dupla. O processo criativo de Claudinho e Buchecha está presente, mas às vezes de forma tão superficial que as músicas parecem ter surgido em um passe de mágica. A que recebe maior destaque é Fico Assim Sem Você. O filme mostra a insatisfação de Buchecha com o trecho "Amor sem beijinho / Buchecha sem Claudinho / Sou eu assim sem você". Para ele, Buchecha sem Claudinho era algo que não poderia existir nem em letra de música.
O debate em torno de Fico Assim Sem Você é o gancho que leva ao momento mais emocionante do filme: a morte de Claudinho. É difícil segurar as lágrimas na sequência que representa o último show feito pela dupla. Elas continuam rolando quando a câmera mostra Buchecha encontrando o carro de Claudinho na estrada, já acidentado. O som do filme é desligado na cena, e o show fica por conta da atuação de Juan Paiva.
O ator celebra a oportunidade de homenagear os ídolos, mas sobretudo de acessar a trajetória deles para além da superfície:
— As pessoas conhecem muito a parte da música, do entretenimento, mas isso é a ponta do iceberg. O buraco é muito mais embaixo, tem coisas por trás disso que são íntimas, que não eram compartilhadas com qualquer um. Poder entrar nessa história foi um privilégio danado. E como um preto favelado que cresceu ouvindo funk, eu fico muito feliz pela oportunidade de representar a história desses dois caras.
É justamente na representatividade que mora o maior mérito de Nosso Sonho. Antes de uma cinebiografia de Claudinho e Buchecha, o filme é um retrato dos brasileiros que vivem nas periferias do país. Um retrato sem armas, sem drogas, sem violência, ancorado somente no sonho, na energia e no talento de dois garotos favelados que conseguiram vencer na vida, apesar de todas as adversidades.
E apesar do que poderia ter sido melhor executado no filme, vale muito a pena reservar duas horas para se emocionar com a história de Claudinho e Buchecha — que, enfim, virou cinema.