— Uma obra de arte sempre é feita sob tensão — sentencia o diretor e produtor audiovisual Roberto de Oliveira, na tranquilidade de quem sabe do que está falando.
Atuando como empresário de Elis Regina na década de 1970, Oliveira foi o responsável por idealizar uma das obras mais reverenciadas da música popular brasileira: o disco Elis & Tom (1974), histórico desde o seu primeiro ato, materializado na figura de Tom Jobim em frente ao aeroporto de Los Angeles, à espera de Elis, com um sorriso no rosto e flores na mão. Sem saber que os dias que se seguiriam a partir daquele, entre fevereiro e março de 1974, no estúdio da gravadora norte-americana MGM Records, seriam também de caras fechadas e espinhos. De pau, de pedra e um quase fim do caminho, com as malas de Elis Regina prontas para voltar ao Brasil, sem disco, sem águas de março, sem Tom.
Esta e outras tensões que marcaram o nascimento do disco são abordadas em Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você, documentário que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (21), após estreia internacional e passagens por diferentes festivais no Brasil e no mundo. O filme reúne depoimentos de personalidades que testemunharam o processo e imagens inéditas dos ensaios e das gravações no estúdio da MGM, capturadas por Roberto de Oliveira com uma câmera 16mm e preservadas por ele durante quase 50 anos.
— Guardar esse material foi como carregar um peso nas costas — diz Oliveira, que assina a direção do filme ao lado de Jom Tob Azulay. — Muita gente me cobrava o tempo todo, mas não tive pressa. Não captei as imagens para fazer um filme, não havia roteiro. Captei as imagens para registrar um momento que eu já entendia que era histórico.
Não era difícil de perceber isso. Naquele 1974, Tom Jobim já havia se tornado uma figura mundialmente conhecida, alavancado pelo sucesso da bossa nova e a icônica parceria com Frank Sinatra. E Elis era Elis, uma das maiores cantoras brasileiras. A ideia de reunir os dois em um disco parecia genial, sobretudo por também ter sido utilitária. O documentário revela que os dois artistas tinham interesses subliminares no encontro: Tom precisava fazer algo que o reconectasse ao público brasileiro, pois percebia que a bossa nova havia perdido espaço no país; Elis, por sua vez, precisava encontrar um meio de limpar sua barra após ter cantado nas Olímpiadas do Exército de 1972.
Não havia dúvidas de que a união seria boa para ambos. O que divergia era a concepção de cada um sobre o projeto. Elis e sua equipe entendiam que aquele seria um disco da cantora, tendo Jobim como convidado. Mas ele não estava ciente disso. Tom Jobim, que era pouco habituado a ocupar papéis coadjuvantes, achou absurda a ideia de ter as canções arranjadas por Cesar Camargo Mariano, à época marido, pianista e arranjador de Elis. Também achou absurdo o piano elétrico tocado pelo músico. E não hesitou em demonstrar sua insatisfação.
As imagens reunidas no filme mostram bem o clima passivo-agressivo que tomou conta do estúdio durante os 18 dias em que os arranjos foram retrabalhados. Sempre que podia, o maestro zombava do instrumento e das ideias de Mariano. Ele parecia relevar, mas confessa, em depoimento para o documentário, que aquilo "era uma verdadeira facada no peito". Já Elis ficava no meio do cabo de guerra, perdendo a paciência dia após dia, a ponto de quase desistir do projeto.
— Não houve nenhum tipo de censura no documentário, não quis proteger nem estimular ninguém. Acho que as imagens revelam o que cada um tinha de melhor e de pior — avalia Roberto de Oliveira. — Os bastidores eram de muita reclamação, de momentos de provocação e ironia, mas era algo sutil, nunca houve um episódio mais sério quando eles estavam juntos. Nada sério no sentido de um confronto explosivo, né? O que houve de sério foi que quase não rolou o disco (risos) — lembra.
Mas rolou. E embora a maior parte do documentário seja ocupada pelo conflito, o processo de superação dele, que possibilitou a conclusão do disco, forma o ponto mais alto do filme. Não há explicação para a virada de chave que atravessou Elis Regina, Tom Jobim e Cesar Camargo Mariano. Foi como mágica. Talvez tenham sido as águas de março que chegaram para fechar o verão, após aquele conturbado fevereiro no estúdio da MGM. O fato é que tudo mudou.
Elis Regina e Tom Jobim se apaixonaram um pelo outro. Uma paixão artística, musical e pura, que salta aos olhos nas imagens captadas pela filmadora de Roberto de Oliveira. As sequências reunidas no filme revelam momentos capazes de emocionar o espectador. É algo difícil de se alcançar com um documentário, mas não há como resistir ao amor vivido por Elis, Tom e a música.
— Era o amor que surge entre pessoas que estão tocando juntas, um tipo de sentimento que transcende a relação — diz Oliveira. — Foi muito bonito esse fenômeno que aconteceu. Na hora em que os talentos deles se reconheceram, virou aquele milagre que só a arte pode fazer. Houve um início conflitante, mas eles terminaram a gravação em êxtase.
É algo comprovado em cenas como a que Elis aparece gritando repetidamente, em completa catarse, que queria "morrer no Carnaval", após cantar com Tom a canção O que Tinha de Ser. Ou na que revela uma conversa íntima da Pimentinha com o maestro, na qual ele admite copiar nomes como Pixinguinha, Villa-Lobos e Ary Barroso. "Só se pode copiar a quem se ama", justifica Tom Jobim, citando a frase do compositor russo Igor Stravinsky, outro de seus "monstros sagrados".
Com imagens que se tornam valiosas justamente pela simplicidade, o documentário consegue humanizar as figuras de Elis Regina e Tom Jobim. Do mesmo modo atuam os depoimentos de João Marcelo Bôscoli, filho da cantora, e Beth Jobim, filha do maestro.
Quando os créditos sobem, não restam dúvidas de que Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você, além de um excelente filme sobre música, também é um filme sobre a humanidade.
— A grande lição é que você não precisa ser igual ao outro para cooperar. E que até os grandes gênios ainda podem aprender alguma coisa. Elis e Tom, mesmo sendo artistas completos, conseguiram aprender um com o outro e sair melhores daquele encontro — afirma o diretor.