O que era para ser um vídeo reunindo mãe e filha — com a finalidade de vender automóveis, é verdade — gerou debates envolvendo ditadura, uso ético de inteligência artificial (IA) e o significado de uma das canções mais importantes da história da música popular brasileira.
Veiculado desde terça-feira (4), o novo comercial da Volkswagen dividiu opiniões na web. No vídeo que celebra os 70 anos da empresa no Brasil, a cantora Maria Rita surge dirigindo a Kombi elétrica ID. Buzz e logo é acompanhada pela mãe, Elis Regina (1945-1982), que conduz uma Kombi clássica. Como Elis partiu há mais de 40 anos, a cantora teve o rosto recriado por meio de um técnica de inteligência artificial — deepfake. Juntas, elas cantam Como Nossos Pais, composição de Belchior.
Muita gente se emocionou: nas redes sociais, pipocaram comentários de pessoas que relataram ter chorado com a propaganda. "Nossa! Para quem não tem mais a mãe. Foi um soco no estômago. Chorei demais", disse uma usuária do Twitter. "Chorei e não foi pouco com a Maria Rita e Elis Regina cantando 'juntas' na Kombi", comentou outro perfil.
Por outro lado, muitas críticas ao vídeo também se propagaram pela internet. Teve quem estranhasse a técnica de IA e as implicações éticas de recriar uma pessoa que já partiu para fins publicitários.
Outros perfis apontaram para as ligações da empresa com a ditadura no país — um inquérito contra a montadora foi aberto em 2015, no qual se confirmou que o serviço de segurança da VW ajudou a entregar opositores aos militares. Conforme relatório de investigação, a empresa se aliou espontaneamente ao governo militar, sem receber nenhum tipo de pressão.
Em 2020, a montadora concordou em pagar R$ 36 milhões por ter colaborado com o regime, sendo que parte do valor foi direcionada a ex-funcionários que denunciaram ter sofrido violações. Então, houve questionamentos ao comercial por conta de Elis ter feito oposição à ditadura. Ela foi perseguida durante o regime, o que a levava a ceder a pedidos de militares por receio de represálias — por exemplo, quando ela cantou no evento militar para celebrar o Sesquicentenário da Independência, em 1972.
Os internautas ainda lembraram que o primeiro presidente da sede da Volks no Brasil, Friedrich Schultz-Wenk, era ex-filiado ao partido nazista. Outros fãs recordaram que Elis chegou a realizar show arrecadando renda para o fundo de greve dos metalúrgicos, em 1979.
Como Nossos Pais?
Por fim, um dos principais incômodos que o comercial causou nos fãs foi o uso da música Como Nossos Pais. Muitos fãs reclamaram que o sentido da canção foi distorcido, sendo romantizada para simbolizar um amor entre gerações ou representar uma nostalgia.
Autor da biografia Belchior — Apenas Um Rapaz Latino-Americano (2017), o jornalista e escritor Jotabê Medeiros lembra que a canção foi criada por volta de 1974 e apresentada a Elis em São Paulo pelo compositor, que ela conheceu durante as sessões de gravação de um disco de Vinicius de Moraes. A artista incluiu a música no show Falso Brilhante, de 1975.
Em entrevista ao programa Nossa Língua Portuguesa, em 1996, Belchior conta que Como Nossos Pais surgiu da vontade de compor uma canção ácida, amarga e reflexiva sobre a "condição sempre mutante do jovem na era da comunicação", além do "comprometimento político que essa mudança acarreta".
— Como essa mudança ocorre com muita frequência, eu quis fazer uma canção que ultrapassasse a mera narrativa do conflito de gerações. Naquilo que compromete a alma do jovem urbano, suburbano, provinciano e metropolitano. Eu sei que essa canção ainda hoje soa muito atual, apesar da acidez — relatou o compositor na época.
Questionado sobre o trecho "Minha dor é perceber/ Que apesar de termos feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos e vivemos/ (...) Como os nossos pais", Belchior pontuou:
— Parece uma coisa assentada na música para algumas pessoas, como se a gente declarasse isso sem que passasse para o espectador o tormento dessa constatação. Daí o comprometimento do autor: a gente observa que isso acontece, mas não concordamos com isso, não gostaríamos que assim fosse.
Jotabê destaca que Belchior trata de um sentimento de impotência ao diagnosticar que as novas gerações não aprendem com os erros das gerações anteriores e voltam a repeti-los.
Fãs foram colocados frente ao real significado de músicas que ouviram a vida toda sem saber realmente do que tratavam
JOTABÊ MEDEIROS
Biógrafo de Belchior
— Ele se angustia com isso — observa o biógrafo. — Mas Belchior, ao contrário dos cantores de protesto de sua geração, está longe de ser messiânico. Ele apenas confessa sua frustração com esses recuos, de um jeito terno, com cadência de advertência fraterna e com refinamento poético.
O escritor frisa que a canção se opõe frontalmente ao "domínio da caretice e da repressão política e comportamental", ao bradar: "Por isso, cuidado, meu bem: há perigo na esquina. Eles venceram, e o sinal está fechado para nós, que somos jovens". Jotabê acrescenta que, na música, o jovem que fazia manifestações de rua por mudanças, "cabelo ao vento, gente jovem reunida", virou apenas um retrato doloroso na parede. O jornalista ainda aponta que Belchior também se insurge contra a imperiosidade da xenofobia ("Eu vou ficar nessa cidade, não vou voltar pro sertão").
Há também um elemento de revolta na ideia de que não há nada de novo nas expressões contemporâneas da música e da arte, como sublinha Jotabê, algo que seria sempre muito esgrimido contra as novidades por um pensamento conservador. "Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem", como diz a letra.
Contudo, o autor ressalta que a interpretação de Elis acentua a dramaticidade da canção, fazendo com que ela passe a ter a leitura de um desabafo romântico.
— Ela já foi cantada por criança em reality show de talentos infantis na TV, já foi analisada por professor de canto norte-americano, já foi interpretada por centenas de artistas da música. As múltiplas compreensões de uma obra de arte também são parte de sua grandeza — pondera.
No debate sobre o comercial, um argumento recorrente era de que o papel de uma obra artística é causar diferentes sensações e interpretações, sem a necessidade de seu significado ser literal. Autora da biografia Furacão Elis (1985), a jornalista e escritora Regina Echeverria descreve a propaganda como "esquisita" por conta do uso de IA. Porém, ela estranhou toda repercussão.
— A bronca é livre, mas a criatividade também é — diz a biógrafa. — Só que é fantasia. Se é uma grande ficção, então, vamos ver assim.
Jotabê reflete que o debate recente em torno da reapropriação da canção Como Nossos Pais em peça publicitária tenha a ver com um fenômeno contemporâneo: a interpretação errônea e reiterada do significado das músicas.
— Recentemente, por causa das polarizações políticas, fãs foram colocados frente ao real significado de músicas que ouviram a vida toda sem saber realmente do que tratavam — pondera.
Para Maria Rita, por outro lado, o comercial foi a concretização de algo que ela almejou em toda a vida dela. Em seu perfil no Instagram, ela comentou que a campanha era "linda" e "de arrepiar". "Além disso, eu realizei meu sonho. Foi um momento mágico. Muito obrigada", escreveu.