Depois que eu malhei Coringa, um leitor, no Facebook de GaúchaZH, ironizou: "Bom mesmo é Hebe".
E é bom mesmo, respondi, como o meu colega Carlos André Moreira já havia dito quando a cinebiografia da apresentadora Hebe Camargo (1929-2012) entrou em cartaz.
Fiquei matutando sobre aquela provocação, que talvez trouxesse embutido um histórico pé atrás do público para com o cinema nacional (uma pena, pois artisticamente o Brasil não deve nada a outras cinematografias). Acho difícil estabelecer juízo de valor entre filmes tão distintos. Por outro lado, me propus a estabelecer relações entre os dois títulos, uma espécie de seis graus de aproximação.
1) Ambos os filmes lançam novos olhares sobre figuras – uma real, a outra fictícia – já bastante conhecidas e com carreiras contemporâneas: Hebe estreou, como cantora, em 1943, apenas três anos após Coringa aparecer pela primeira vez nos quadrinhos, nas páginas de Batman número 1. Se o cineasta Todd Phillips mostra um vilão diferente daquele com o qual estávamos acostumados, em um desempenho assombroso de Joaquin Phoenix (que não se parece em nada com as encarnações anteriores do personagem), por aqui o diretor Maurício Farias mostra uma apresentadora que não conhecíamos muito, a estrela longe dos holofotes, em uma performance cativante de Andréa Beltrão (que não se parece fisicamente e optou por não imitar a verdadeira Hebe).
2) Em ambos os filmes, a TV desempenha um papel fundamental. Hebe Camargo, é claro, já tem o espaço e a fama perseguidos por Arthur Fleck, um aspirante a comediante que sonha em ser convidado para o talk show de Murray Franklin (Robert De Niro).
3) (ATENÇÃO: conforme alertou um leitor fiel, NESTE TÓPICO PODE HAVER UM SPOILER de Coringa) Em ambos os filmes, os protagonistas tomam diante das câmeras, ao vivo, uma decisão que representará o grande salto em suas carreiras. Enfim sentado no sofá de Murray Franklin, Arthur assume a persona de Coringa e revela ao mundo sua vilania. Em Hebe, desgostosa com o cerceamento na Bandeirantes, a apresentadora anuncia sua demissão ao final de um programa – sua casa seguinte será o SBT, de Silvio Santos, onde permaneceria por 25 anos e onde chegou a comandar três atrações simultâneas.
4) Ambos os filmes – vejam só – começam com o/a protagonista de frente para um espelho, encarando seus dilemas e evidenciando algumas fraquezas. Viciado em cigarros, Arthur maquia-se como palhaço para mais uma jornada insalubre. Sempre com uma bebida alcoólica à mão, Hebe tem mais cacife: está num cabo de guerra com o produtor Walter Clark (Danilo Grangheia, em uma ótima caracterização). Este início, aliás, remete ao que seria um elo perdido entre Hebe e Coringa: Bingo, o Rei das Manhãs (2017), outra celebridade da TV brasileira dos anos 1980 que desafiava convenções e tinha dependência química, outro homem que se veste de palhaço para buscar o reconhecimento, mas que, tristemente, descobre que isso só é possível se ele estiver atrás de uma máscara.
5) Em ambos os filmes, os lares dos protagonistas não são o que parecem à primeira vista. Ao chegar em casa, Arthur demonstra carinho pela mãe, Penny, dança com ela e os dois assistem juntos, na mesma cama, a seu programa de TV favorito. Depois, saberemos que Penny foi uma mãe negligente, que permitiu os maus-tratos do pequeno Arthur por um namorado. Hebe mora em uma mansão com o único filho, Marcello (Caio Horowicz), e seu segundo marido, o empresário Lélio (Marco Ricca). Com este último, ela também gosta de dançar, mas depois saberemos que o casamento é complicado, pois Lélio tem muito ciúme – em uma cena, Hebe precisa quebrar uma garrafa para usar como defesa contra as agressões dele. E, enquanto Arthur nutre uma fantasia pela vizinha, Sophie, Hebe vive um faz de contas com o filho, que, aos seus olhos, continua uma criança – vide a decoração da festinha de aniversário de 20 e poucos anos.
6) Ambos os filmes são ambientados na década de 1980, mas permitem refletir sobre temas atuais. Coringa retrata (ainda que não haja consenso sobre essa leitura) o fenômeno dos incels, os celibatários involuntários, homens brancos heterossexuais que, por inabilidade social ou rejeição, acabam resignando-se à abstinência sexual, e depois, como forma de sublimar essa frustração, abraçam a violência. O pacote de questões contemporâneas inclui o culto à celebridade e a falta de empatia, duas faces de uma sociedade egoísta (seja pelo sentimento de desamparo, seja por vontade própria).
Hebe retrata um tema que teima em permanecer atual: o preconceito contra o público LGBT+. O filme dá destaque às iniciativas de inclusão e de enfrentamento do conservadorismo promovidas pela apresentadora. Que, por exemplo, levou a modelo transexual Roberta Close a seu programa e a chamou de "Luiz Roberto Gambine, a mulher mais bonita do Brasil". Que peitou a censura para falar sobre homossexualidade e aids na TV, dois tabus. Mas a mesma mulher que perguntava "Qual é o problema de ser bicha?" não sabia lidar com o assunto dentro de casa; a mesma mulher que reclamava da desonestidade de políticos fez campanha para Paulo Maluf, a quem se aplicava o slogan "rouba, mas faz"; a mesma mulher que advogava pela emancipação feminina ficou presa anos a um relacionamento abusivo. Essas contradições, mesmo que nem todas muito bem exploradas em cena, não apenas dão força dramática à personagem. Também mandam um recado pertinente ao mundo polarizado e dicotômico de hoje, em que uma única bandeira é, no julgamento dos outros, capaz de definir por inteiro uma pessoa. Hebe disse certa vez que não era de direita nem de esquerda: era direta. Pois bem. Uma pessoa de direita não é, compulsoriamente, homofóbica, e uma pessoa de esquerda não tem, necessariamente, boa vontade para com a causa LGBT+. Conheço exemplos dos dois casos. A vida não é em preto e branco – temos muito mais tons de cinza do que aqueles com os quais o tribunal das redes sociais tenta nos pintar.