Pode não ser a salvação da lavoura do cinema brasileiro contra a praga da comédia indigente que floresce reciclando receitas ao gosto do público. Nem a luz no fim do túnel que não seja um trem lotado de clichês para forçar risos e lágrimas. Mas é bem provável que Bingo, o Rei das Manhãs mostre que é possível, sim, dialogar com um número expressivo de espectadores sem abrir mão de ambições formais e dramatúrgicas. Vale apostar que será bem-sucedido nessa dupla missão.
Em cartaz a partir desta quinta-feira (24), a comédia dramática é uma cinebiografia mais ou menos fiel de Arlindo Barreto, ator que foi um dos primeiros intérpretes do palhaço Bozo, sucesso da TV americana que Silvio Santos importou no começo do anos 1980 para comandar em seu canal um programa infantil que fez imenso sucesso – chegou a alcançar o primeiro lugar de audiência.
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Ocorre que Barreto era um tipo peculiar para se confiar uma atração do gênero. Afora o destaque em um clássico do cinema nacional, A Intrusa (1979), ao lado de Zé de Abreu, o ator boa-pinta fez carreira nas pornochanchadas e circulou como figurante por telenovelas. O acaso o colocou no papel de Bozo. Entrou em crise por fazer sucesso sem mostrar a cara, mergulhou em álcool e cocaína e hoje é pastor evangélico. Em 1998, Barreto revelou numa entrevista que muitas vezes apresentou o programa bêbado e doidão, não raro após participar de uma orgia nos camarins do estúdio.
O diretor Daniel Rezende leu essa entrevista e viu um personagem fascinante para sua estreia no comando de um longa-metragem. Mas ele não era nenhum novato à época. Rezende começou a se destacar no cinema como montador – é na atualidade um dos mais renomados e não apenas no Brasil. De primeira, foi indicado ao Oscar por seu trabalho em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e seu nome está nos créditos de filmes como Diários de Motocicleta (2004), de Walter Salles, Tropa de Elite 1 e 2 (2007 – 2010), de José Padilha – é parceiro recorrente desses diretores – e A Árvore da Vida (2011), do americano Terrence Malick, entre outros longas de relevo. Com seu primeiro filme como diretor, o curta Blackout (2008), premiado no Festival de Gramado, muita gente previu a mudança de rumo na carreira do jovem montador – o paulistano tem 42 anos. Por que a demora para a estrear no longa?
– Sua pergunta meio que já responde. Tenho uma carreira consolidada na montagem, que amo e nunca pensei em deixar de fazer – diz Daniel. – Estava procurando o projeto certo para fazer da maneira que gostaria: um filme com qualidade dramatúrgica, qualidade de produção, uma boa história, um bom personagem e que pudesse ter apelo junto ao público. Ficamos muitos anos trabalhando no roteiro (de Luiz Bolognesi) porque não estava com pressa.
No filme, Bozo vira Bingo, por questão de uso da marca, e Arlindo Barreto atende por Augusto Mendes, para reforçar que a história real é percorrida com alguns desvios. O intérprete do palhaço era filho de uma personalidade famosa da TV (Márcia de Windsor, a jurada boazinha dos programas de calouros), teve problemas de relacionamento com o filho pequeno, casou-se com sua produtora (vivida por Leandra Leal, responsável por sua conversão religiosa) e viveu um romance com a cantora Gretchen – única citada com seu nome verdadeiro, encarnada à perfeição nas formas e rebolados de Emanuelle Araújo.
– O que me interessou, mais do que tudo, na história, foi ser um personagem que está buscando seu lugar sob os holofotes, mas quando encontra reconhecimento é por trás de uma máscara. Eu queria ter 100% de liberdade criativa. Arlindo serviu de inspiração, mas a gente queria criar nosso próprio palhaço, o Augusto, que é um tipo de palhaço muito comum no Brasil – explica Daniel.
Wagner Moura seria o Bingo de Rezende, mas o ator não conseguiu encaixar o filme em sua agenda internacional e indicou o amigo e "conterrâneo" Vladimir Brichta, (mineiro criado na Bahia), que se entregou à missão com notável empenho.
– É uma personagem que destaca questões inerentes à vida do ator, como o sucesso e a imagem, as relações humanas e familiares – destaca Brichta. – E me interessou muito a questão destrutiva dos palhaços, a polaridade de tristezas e inquietações comuns a todo ser humano. Veja uma figura com a grandeza do Robin Williams, que tirou a própria vida, do Andy Kaufman, que viveu um processo de autodestruição, o Jim Carrey que não quer mais trabalhar porque ficou deprimido. Criei o Bingo muito próximo do que seria o meu palhaço. Mas a energia do Arlindo está ali.
Bingo, o Rei das Manhãs conta com participação de Domingos Montagner, ator que morreu no ano passado. Em sua última atuação no cinema, ele vive um palhaço de circo que dá dicas a Augusto – na vida real, Montagner reproduzia a alegria do picadeiro com sua companhia teatral La Mínima.
– Foi muito triste. O Domingos representava o galã embaixo da lona. O roteiro tem a mão dele na sequência em que seu personagem fala ao Augusto sobre o ofício do palhaço – lembra Brichta.
BINGO: O REI DAS MANHÃS
De Daniel Rezende
Comédia dramática, Brasil, 2017, 113min, 16 anos. Estreia amanhã nos cinemas.
Cotação: muito bom