Acaba de entrar no catálogo da MUBI Incompatível com a Vida (2023), filme vencedor do Festival É Tudo Verdade, o que o tornou elegível para o Oscar 2024 de melhor documentário (os semifinalistas serão anunciados pela Academia de Hollwyood no dia 21 de dezembro). O título tem roteiro e direção da paulistana Eliza Capai, ganhadora de dois prêmios paralelos no Festival de Berlim por Espero tua (Re)volta (2019), um retrato do movimento estudantil a partir dos protestos de 2013.
"Incompatível com a vida" é o termo que médicos usam para definir condições como a raríssima Síndrome de Edwards, uma alteração no cromossomo 18 com impacto em múltiplos órgãos e sistemas do bebê. Entre as principais características, estão malformações congênitas (inclusive do coração), atraso mental e atraso do crescimento. Muitos dos fetos morrem ainda durante a gestação, e os que sobrevivem não costumam passar dos dois anos de idade. A síndrome pode ser detectada durante a gravidez, o que significa que algumas mães se veem em uma situação dolorosa: carregam no ventre um filho condenado à morte. Precisam fazer o luto antes mesmo de as crianças nascerem.
Mas um filho é para sempre; pode "virar estrela" ou nunca ter vivido de fato, mas jamais será esquecido, como demonstram mulheres entrevistadas pela diretora. Laís, por exemplo, guarda até hoje as roupinhas de Sussu. Não conseguiu doar nem quando sua irmã engravidou.
— Tá tudo cheiroso, ficou tudo te esperando — ela diz, entre lágrimas, enquanto acaricia um tip-top vermelho. — Mamãe fica olhando e lembrando de você. Como você ia ficar bonita usando. A mãe sempre vai conversar também. Eu sei que você pode me ouvir. Mamãe te ama muito. Mamãe sempre vai te amar.
A própria Eliza Capai é personagem do filme. Ela documentou a sua jornada: a alegria e o encantamento pelo futuro que estava por vir — "Eu sempre quis ser mãe", afirma; o medo, por causa de uma suspeita de que algo estava errado, e depois a tristeza, quando veio o diagnóstico de que seu bebê não sobreviveria; e o aborto, que só pôde ser realizado porque a cineasta morava em Portugal, onde a interrupção da gravidez é legalizada. Convém avisar: a cena que surge por volta do 72º minuto dos 92 de duração é impactante.
Incompatível com a Vida propõe uma reflexão sobre a vida e a maternidade, sobre a morte e o luto (e também sobre como casais reagem), sobre o aborto e as políticas públicas. Segundo o documentário, em Portugal o aborto era a terceira causa de morte materna antes de uma lei permitir a interrupção voluntária da gravidez — em mais de uma década de legalidade, não houve óbito no país. Já no Brasil, "uma mulher morre a cada dois dias por causa de aborto inseguro". A legislação brasileira só autoriza a prática em três situações: gestação decorrente de estupro (mas o filme lembra do terrível episódio ocorrido no Espírito Santo, o da menina de 10 anos que engravidou após ser violentada por um tio e que, apesar de determinação da Justiça, viu os médicos se negarem a fazer o procedimento), anencefalia fetal e quando há risco de morte à mulher ou ao bebê — a detecção de incompatibilidade com a vida não se enquadra nos casos.
— Ao passar por esta situação, me dei conta de uma crueldade ainda maior da lei que criminaliza o aborto no Brasil — conta Eliza no material de imprensa. — Mesmo mulheres que desejavam seus filhos, ao se verem gestando um bebê que infalivelmente morreria nos primeiros minutos ou horas de vida extrauterina, são obrigadas a levar a gestação a cabo. É uma forma de tortura, tanto para a mulher, quanto para o filho.