Acaba de reaparecer no menu da Netflix um filme icônico tanto de seu diretor, o estadunidense Quentin Tarantino, quanto de sua época, os anos 1990: Pulp Fiction (1994), que no Brasil ganhou o desnecessário subtítulo Tempo de Violência.
Então com 31 anos, o diretor e roteirista nascido em Knoxville, no Tennessee, conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes com um dos filmes mais discutidos, analisados, influentes e imitados das últimas três décadas. A partir de Pulp Fiction, Tarantino conseguiu transformar seu sobrenome em adjetivo, a exemplo de mestres como Fellini, Hitchcock e Bergman.
Tarantinescos são os filmes que conjugam personagens amorais, mas com um código de ética muito particular (geralmente interpretados por um elenco que até então amargava o ostracismo), violência estilizada, referências mil à cultura pop (de quadrinhos de super-herói às produções orientais de kung fu, do faroeste italiano aos seriados de TV), diálogos embebidos por frases de efeito, palavrões e banalidades, um senso de humor mórbido e uma trilha sonora descolada e classuda, que costuma dar margem a cenas de dança. Ah, sim, e ele tem um fetiche que ninguém se atreve a copiar: o de mostrar, detidamente, pés femininos.
Ultimamente, Tarantino aprimorou uma característica narrativa de seu início de carreira. Se Cães de Aluguel (1992), seu primeiro longa-metragem, e Pulp Fiction contavam a história por diferentes pontos de vista, em Bastardos Inglórios (2009), Django Livre (2012) e Era uma Vez em Hollywood (2019) o cineasta reescreve a História.
Sobre Pulp Fiction, assim resumiu Roger Lerina certa vez em ZH: "Tarantino potencializa as características de sua estreia ao costurar tramas e personagens em um ziguezague narrativo desconcertante, condimentando com humor e ação esse xis-tudo de referências pop". A engenhosa narrativa circular faz três tramas principais costurarem sete segmentos cronologicamente embaralhados. Os protagonistas são dois matadores (John Travolta e Samuel L. Jackson) atrás de um boxeador (Bruce Willis) que passou a perna no chefe deles (Ving Rhames, que tem uma das frases mais antológicas da filmografia tarantinesca, aquela do "Eu vou ser medieval..."). Há ainda a namorada (Uma Thurman) do gângster, a quem um dos pistoleiros precisa entreter em uma noitada de drogas e rock'n'roll.
As discussões dos dois assassinos de aluguel sobre banalidades tornaram-se icônicas. Antes de uma chacina, Vincent e Jules fazem digressões sobre a liberalidade com as drogas em Amsterdã, o nome do sanduíche quarterão com queijo em francês e o componente erótico de uma massagem nos pés. "Os atores parecem sair dos personagens para retomá-los em seguida. O impacto verbal é tão forte e violento quanto o impacto físico da ação", escreveu o crítico britânico Mark Cousins, que também fez uma ponderação curiosa no seu livro História do Cinema (2004). Para o ensaísta de publicações como Sight & Sound e The Times, antes do conceito de meme ser conhecido na internet, Pulp Fiction foi um meme cinematográfico: sua influência viral fez com que muitos filmes produzidos nos anos 1990 se parecessem com versões opacas da obra de Tarantino.
Com orçamento de US$ 8 milhões, Pulp Fiction faturou US$ 213 milhões apenas nos cinemas. Venceu o Oscar de roteiro original (assinado por Tarantino com Roger Avary) e disputou as estatuetas douradas de melhor filme, diretor, ator (John Travolta), ator coadjuvante (Samuel L. Jackson, que ficou celebrizado pelo monólogo em que recria uma passagem da Bíblia, Ezequiel 25:17), atriz coadjuvante (Uma Thurman) e montagem.
A trilha sonora foi onipresente nas festas bacanas dos anos 1990. Misirlou, surf music instrumental que abre o filme, gravada por Dick Dale em 1962, é uma versão de uma canção folclórica com provável origem no Império Otomano. Tarantino também "descobriu" e usou no filme pérolas como o funk Jungle Boogie, gravado em 1973 pelo Kool & The Gang, You Never Can Tell, hit de 1964 de Chuk Berry dançado antologicamente pelos personagens de Thurman e Travolta, Son of a Preacher Man, gravada em 1968 por Dusty Springfield, a versão do Urge Overkill para Girl, You'll Be a Woman Soon, canção de Neil Diamond de 1967, e Let's Stay Together, na voz de Al Green, em registro de 1971.
Sete curiosidades sobre "Pulp Fiction"
1) Pulp Fiction foi idealizado, inicialmente, como três longas policiais B de baixíssimo custo que o diretor rodaria com a mesma equipe e o mesmo elenco. O método era usado por dois cineastas que ele idolatra: Monte Hellman e Roger Corman. Com o sucesso de Cães de Aluguel (1992), vislumbrou a possibilidade de reunir as três histórias em um filme só. O roteiro circular definitivo começou a tomar forma durante uma temporada que ele passou em Amsterdã — daí as referências à Holanda no início da trama.
2) No projeto original de Tarantino, Vincent Vega seria vivido por Michael Madsen (ator de Cães de Aluguel), que optou por outro trabalho. O papel ficou com John Travolta, nome que o diretor fez prevalecer sobre o desejo do produtor Harvey Weinstein de chamar Daniel Day-Lewis, que queria interpretar o matador.
3) O cachê de Travolta foi de cerca de US$ 150 mil. Depois de Pulp Fiction, subiu para US$ 20 milhões. Já Bruce Willis cobrava US$ 8 milhões à época, mas topou um salário simbólico em troca de participação nos lucros. Com a carreira em momento crítico, foi um grande negócio, sobretudo em prestígio, algo que se repetiu com todo o elenco do filme.
4) Uma Thurman inicialmente recusou o papel de Mia, o que fez atrizes como Isabella Rossellini, Meg Ryan, Daryl Hannah e Michelle Pfeiffer serem entrevistadas. Tarantino convenceu Thurman lendo o roteiro para ela ao telefone.
5) A dança de Vince e Mia no Jack Rabbit Slim's faz citação à sequência com Mario Pisu e Barbara Steele em 8 1/2 (1963), de Federico Fellini.
6) Em seu livro de memórias, Cidadão Cannes, Gilles Jacob, presidente do Festival de Cannes, revela os bastidores da votação que deu a Palma de Ouro a Pulp Fiction. Segundo ele, o filme era o "protegido" do presidente do júri, Clint Eastwood. Na primeira rodada de votos, Pulp Fiction saiu atrás do chinês Tempo de Viver, de Zhang Yimou, e empatou com o russo O Sol Enganador, de Nikita Mikhalkov. Mas virou o jogo depois.
7) Em 2002, o mais famoso artista visual de rua do mundo, o britânico Banksy, se apropriou de uma cena célebre de Pulp Fiction, com os personagens de Travolta e Jackson. Só que, no lugar das pistolas, colocou duas bananas. Cinco anos depois, acabou coberto de tinta por funcionários da estação Old Street do metrô de Londres, em uma ação de limpeza contra pichações.