Em 2021, o Brasil foi brindado com a publicação quase simultânea de duas das mais aclamadas obras do quadrinista espanhol Miguelanxo Prado.
Primeiro saiu Traço de Giz (1993), pela Pipoca & Nanquim. Depois, este Tangências (1995), da Conrad, com tradução de Claudio Martini (64 páginas, R$ 54,90).
Contemporâneas, as HQs guardam pontos em comum, embora a primeira seja uma narrativa longa embalada na tradição das ficções científicas sobre viagem no tempo, e a segunda, uma coletânea de oito histórias curtas embebidas num amargo realismo — no conto que dá título a Tangências, por exemplo, ex-namorados reúnem-se 12 anos depois da separação motivada pelas ambições profissionais; em A Partir de Agora, um homem e uma mulher retomam uma paixão interrompida 15 anos atrás e conversam sobre afinidades e incompatibilidades.
Para começar a lista de semelhanças, Traço de Giz e Tangências são trabalhos atemporais, e por isso clássicos, no sentido de que podemos voltar a ler várias vezes, a cada passagem do tempo ganhando novas ressonâncias.
São, também, obras muito felizes no retrato de uma tristeza, muito cirúrgicas no desnudamento de intimidades — em Tangências, há uma mistura de aspereza e poesia nos quadros pintados em acrílica por Miguelanxo, que, acompanhados por diálogos ora cruéis, ora desencantados e por melancólicos monólogos interiores, se assemelham a cenas de filmes que nos seduzem por nos tornarem voyeurs do sofrimento emocional de seus protagonistas e cúmplices dos seus desvios morais.
Aliás, olhando agora, dá até para estabelecer paralelos com o cinema: Traço de Giz é uma espécie de O Ano Passado em Marienbad (1961), do francês Alain Resnais, e Tangências remete à Trilogia da Incomunicabilidade (1960-1962), assinada por outro Michelangelo, o italiano Antonioni.
Nos dois quadrinhos, o amor é fugidio, o romance, uma ilusão. Seus personagens vão a algum lugar embriagados pela nostalgia — que nada mais é do que a versão nociva da saudade. Querem um reencontro, mas não têm o controle da situação — nem dos próprios sentimentos: arrepender-se, recuar e machucar estão entre as ações vistas nos oito contos de Tangências. Como na trilogia de Antonioni, os tipos de Miguelanxo adotam a manipulação, a indiferença e a frieza para com os outros, meros objetos para a satisfação de pulsões momentâneas ou memórias traiçoeiras.