Traço de giz. O título da premiada história em quadrinhos do espanhol Miguelanxo Prado faz referência ao formato peculiar da ilha onde a trama se passa. Mas também pode servir como chave de leitura para a obra de 1993 que acaba de ser lançada no Brasil pela Pipoca & Nanquim, com tradução de Daniel Lopes (108 páginas, R$ 64,90) e com o epílogo adicionado à mais recente edição, além de uma homenagem a Hugo Pratt (1927-1995), italiano criador do mítico personagem Corto Maltese.
Trata-se da quarta publicação solo de Prado, 62 anos, no Brasil (a quinta vem aí: a editora Conrad anunciou Tangências, de 1995). Em 1991, tivemos, dentro da coleção Graphic Novel da Abril, Mundo Cão, uma série de histórias curtas com pegada de crítica social. Em 2003, a Casa 21 lançou, dentro da coleção Cidades Ilustradas, um livro sobre a visita que o quadrinista fez a Belo Horizonte, durante o segundo Festival Internacional de Quadrinhos, realizado dois anos anos na capital de Minas Gerais. Em 2015, a Realejo editou a ambiciosa Ardalén, sobre identidade, memória e criaturas marinhas. O autor espanhol de La Coruña, na Galícia, pôde ser visto ainda em edições das revistas Aventura e Ficção e Heavy Metal Brasil e no álbum Sandman: Noites Sem Fim, escrito por Neil Gaiman em parceria com sete artistas, cada um responsável por um dos sete Perpétuos — Prado ilustrou a trama protagonizada por Sonho.
Laureada no Festival de Angoulême, na França, no Salão de Barcelona, na Espanha, e indicada aos troféus Eisner e Harvard, nos Estados Unidos, Traço de Giz é seu quadrinho mais lido. Talvez o mais relido também (vide o exemplo do jornalista e editor da coleção Graphic MSP Sidney Gusman, autor do prefácio). É que Prado concebeu uma obra com várias possibilidades de interpretação — falaremos delas mais adiante, pois mencioná-las agora seria dar spoiler.
Aliás, se há uma crítica a fazer a Traço de Giz, é a de que a HQ convida a refletir mais sobre sua engenhosidade narrativa do que sobre algum tema abordado. Prado inclusive parece explicitar essa intenção nas epígrafes. "Tu viste e escutaste o mesmo que eu, apenas interpretamos os acontecimentos de maneira diferente", diz a primeira, extraída de The Kidnap Murder Case, romance policial de 1936 da série estrelada pelo detetive Philo Vance, criação do norte-americano S.S. Van Dine. A segunda vem do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, a passagem em que o argentino Jorge Luis Borges cita a "elaboração de um romance em primeira pessoa cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições que permitiriam a uns poucos leitores — a bem poucos leitores — adivinhar uma realidade atroz ou banal".
É um jogo, portanto, o que Miguelanxo Prado nos oferece. Um jogo esplendidamente pintado em acrílico, com cores graduando entre o melancólico e o onírico e cenas noturnas ou interiores escurecidas, o que imprime a um só tempo mistério e realismo. E um jogo sobre o qual ele espalha pistas desde o início, quando Raul — o principal narrador —, após uma tempestade, consegue atracar seu barco em uma ilhazinha perdida no meio do oceano que não consta nos mapas. O lugar é habitado apenas por uma dona de estalagem, seu filho algo esquisito e muitas gaivotas, mas há uma outra visitante: a enigmática Ana, que repele as investidas de Raul e que, por meio das suas anotações em um diário, vai nos fornecendo mais indícios para compreender a trama ambientada nessa ilha que, como ela descreve, "acaba sendo um limite branco e incerto entre o palpável e o possível. Assim, o mundo, o universo inteiro, fica aqui dividido em dois por este traço de giz no meio do oceano".
E o que é, para retomar o início desta resenha, um traço de giz? Duas imagens vêm à cabeça. O giz escreve uma história — ou uma "verdade" — que pode ser apagada, dando vez a outra história. O giz também é um instrumento com o qual a criança exercita sua imaginação ("Eu rabisco o sol que a chuva apagou", cantava a Legião Urbana na música Giz) e desenvolve brincadeiras, como um jogo de amarelinha riscado no pátio da escola.
Miguelanxo Prado — e aqui vale o alerta de spoiler — produziu uma história que pode ser apagada, reescrita, sobreposta. Também fez uma HQ em que a imaginação — ou a autossugestão — desempenha um papel importante e em que, como num jogo de amarelinha, somos instados a avançar e retroceder, refazendo nossos passos (e os dos personagens) na leitura.
E tudo pode ser — para além da mistura de romance impossível com ficção científica sobre viagem no tempo que salta aos olhos na primeira leitura — uma grande brincadeira de adulto. Um exercício de metaficção e intertextualidade, como sugerem as epígrafes anteriormente citadas, as referências aos escritores Adolfo Bioy Casares e Antonio Tabuchi (ambos autores que propunham charadas ficcionais e labirintos narrativos) e a carta de um editor chamado Raul a uma romancista de nome Ana (em que, de forma irônica, Prado comenta a própria obra e as expectativas e exigências do mercado). Recomendo o artigo "Intertextualidad y metaficción en Trazo de Tiza de Miguelanxo Prado", de Antía Marante Arias, disponível na internet, que analisa as camadas de leitura da HQ. Em uma das passagens mais brilhantes, ela destaca como o quadrinista espanhol transcende o espaço insular e claustrofóbico do cenário ao dialogar com as ficções que o inspiraram, mostrando a literatura — e aí podemos incluir as narrativas em geral: os quadrinhos, o teatro, o cinema — como "um continuum de obras conectadas". Essas referências também ajudam Prado a embaralhar, tanto para o leitor quanto para seus personagens, as fronteiras entre o real e a ficção — ou os limites entre o palpável e o possível.
A distinção está borrada como os vestígios de um traço de giz em um quadro negro: nem sempre nítidos e por vezes encobertos, podem nos induzir à distorção e ao equívoco. Temos de nos aproximar — ler de novo — para ligar os pontos e formarmos uma imagem mais completa. E ainda assim ficaremos sujeitos ao engano, à ilusão provocada pela perspectiva adotada. É por isso que, como acontece com Raul e Ana na história, estamos fadados a voltar inúmeras vezes àquela ilha onde os dois personagens espelham a eterna e incansável perseguição humana ao quase sempre inalcançável encontro das nossas expectativas com a realidade.