"Sou duro de ouvido. Tenho um pouco de sordidez."
Essa frase funciona como um cartão de visitas para o protagonista de Torpedo 1936, talvez a mais popular história em quadrinhos espanhola, criada pelo roteirista Enrique Sánchez Abulí e imortalizada pelo traço de Jordi Bernet, e que agora está sendo publicada na íntegra no Brasil pela editora gaúcha Figura.
Cigarro na boca, arma na mão e olhos em algum rabo de saia, Luca Torelli, um gângster siciliano na Nova York dos anos 1930, é duro em muitos sentidos — incluindo aquele a que muitos machões gostam de se atribuir, o da potência sexual. Sua carteira está sempre vazia, daí que sempre aceita qualquer morte por encomenda, não importa se a vítima é um amigo ou um policial, uma mulher ou um padre. Assassino insensível, nunca ri e só chorou uma vez, por um ímpeto moralista do seu primeiro desenhista, o mestre americano Alex Toth (1928-2006).
Foi justamente na aventura de estreia, produzida em 1981. Mas essas lágrimas foram apagadas da versão que veio a público. Depois de desenhar a segunda HQ, Toth pulou fora — não queria compactuar com a amoralidade e a crueldade de Torpedo. Entra em cena Bernet, hoje com 76 anos, parceiro de Abulí, 75, até o fim da série, em 2001 (em 2017, o roteirista lançou com o artista argentino Eduardo Risso uma atualização do personagem, Torpedo 1972). Foram cerca de 60 histórias (mais ou menos um terço delas conhecidas no Brasil graças à revista Animal e aos álbuns da Martins Fontes, na virada dos anos 1980 para os 1990), depois reunidas, na Espanha, em cinco volumes com a obra completa. Repleta de material inédito, a edição da Figura será em três livros — o primeiro, com 228 páginas, custa R$ 87. (A propósito de Bernet, a editora também publicou a igualmente violenta e sarcástica Kraken, parceria com o roteirista Antonio Segura.)
Bernet entendeu de cara que Torpedo "era um verdadeiro filho da puta". Logo mudou as feições do matador, alongando e vincando seu rosto, ícone do cinismo e da sordidez. E aí retomamos a frase inicial deste texto: iletrado, Torpedo faz trocadilhos involuntários e impagáveis (imagino o cansaço e, ao mesmo tempo, o prazer do tradutor Ernani Ssó e do editor Rodrigo Rosa para achar soluções). Surdez vira sordidez, verossimilhança torna-se virilssimilhança, progenitores são pornogitores.
Esses momentos, assim como as participações de Rascal, capanga de Luca Torelli, trazem alívio cômico a histórias barras-pesadas. Abulí e Bernet beberam dos romances de Dashiell Hammett (autor de O Falcão Maltês) e Raymond Chandler (Adeus, Minha Querida) e do cinema noir dos anos 1940 e 1950 — encharcaram as páginas com a "fotografia" em preto e branco e os cenários urbanos, a narração em off e os diálogos rápidos e incisivos, os personagens marginalizados e as femmes fatales, a mentira e a traição, a corrupção e a violência.
Mas a dupla deixou no coador qualquer chance de arrependimento, de salvação, de heroísmo. Torpedo é só mais um vilão abjeto no meio de tantos outros e alguns raros inocentes, inclinado inclusive ao estupro. Trata-se de um tipo "asqueroso e indefensável", como define no prefácio o quadrinista brasileiro André Diniz, autor de Matei meu Pai e Foi Estranho e de Revolta da Vacina, que está sendo lançado agora. Ainda assim, o torpe personagem arregimentou exército de fãs ao longo desses 40 anos desde sua criação.
Além das narrativas dinâmicas (coisa de oito a 10 páginas, muito bem conduzidas por Bernet), o que nos enreda a Torpedo 1936 é o talento de Abulí para o exagero — ou para o superlaxativo, como diz Torpedo. A cada monólogo interior, a cada ofensa, a cada episódio de abuso sexual, o roteirista acentua os desvios morais e a baixeza do protagonista. É como uma caricatura que nos mostra o que de pior pode haver em um homem. Um espelho que revela quem podemos ser quando só olhamos para nós mesmos.