Satsuma Gishiden: Crônicas dos Leais Guerreiros de Satsuma, de Hiroshi Hirata, é um mangá assombroso.
Para começar, a arte é coisa de outro mundo neste quadrinho japonês editado em três volumes (452 páginas e R$ 69,90 cada) pela Pipoca & Nanquim e traduzido por Drik Sada. São os mesmos responsáveis pela estreia do autor no Brasil — O Preço da Desonra, publicado originalmente de 1971 a 1973 e lançado aqui em 2019.
A nova obra é mais recente na carreira de Hirata, 83 anos. Foi produzida entre 1978 e 1982, quando o mestre atingiu seu auge artístico. Nas cenas de ação, que por vezes ocupam uma página inteira, é como se o célebre gravurista alemão Albrecht Dürer (1471-1528) tivesse renascido no Japão para ilustrar histórias de samurai.
Os personagens exibem expressões carregadas de dramatismo e fúria, honra e vergonha. A trama em si traz uma surpresa atrás da outra.
O que começa como uma narrativa praticamente sem diálogos sobre o hiemontori, uma brutal mistura de treinamento militar, esporte e punição a supostos criminosos, umas 40 páginas depois se transforma em uma aula sobre o Japão da segunda metade do século 18, explicando como os bushis (guerreiros) de Satsuma, uma província ao Sul, viviam num paradoxo: tinham a fama, mas não a riqueza. Eram, em sua maioria, pobres que precisavam assumir outros empregos, como carpinteiro, laqueador, lavrador etc. Eram chamados, pejorativamente, de comedores de batata pela classe alta, preconceituosa e abusiva.
Sakon Chiba é um desses comedores de batata, só que ele também devora adversários no combate corpo a corpo. Em tese, é nosso protagonista, mas logo Hiroshi Hirata apronta outra, apresentando mais personagens marcantes, como Jusaburo, jovem de família nobre que desafia o pai e o próprio código dos bushis ao se envolver com uma garota.
Mulheres eram consideradas "criaturas fracas, que valorizavam a estética, buscavam a fantasia e viviam falando de sentimentos, exigindo paparicos e acomodadas por natureza"; "comparada à virtude da conduta do bushi, a mulher se tornava algo extremamente sujo e impuro". Alguns homens, conta o autor, chegavam a tomar banho se apenas tivessem visto uma mulher nas ruas. Neste momento, pode-se viajar no tempo e estabelecer uma conexão com a misoginia da cultura otaku (como retratado no mangá documental Virgem Depois dos 30).
Por falar em tempo, Hirata é o senhor dele em Satsuma Gishiden. Multiplica os quadros se quer dar velocidade e urgência, abre a cena em um único painel para transmitir gravidade e virulência, suspende a ação e retrocede a narrativa para, por exemplo, mostrar como Sakon foi parar no hiemontori.
Enquanto isso, enquanto foca nos dramas e nas tragédias particulares, vai armando o cenário para o impacto coletivo provocado por uma ordem governamental: os samurais devem trabalhar em uma obra de contenção de enchentes. A tarefa, aparentemente impossível, é encarada como uma forma de minar o clã dos Shimazu. Por outro lado, como os Shimazu poderiam desobedecer uma ordem? Afinal, os tempos de Satsuma Gishiden são aqueles em que as palavras tinham um peso que não têm hoje. Em que honra e dignidade guiavam as decisões (para o bem ou para o mal). Em que promessas não eram quebradas facilmente — não sem, pelo menos, desencadear uma profunda crise de consciência, a antessala para a iminente decadência dos samurais.