Sapiens: Uma Breve História da Humanidade transformou seu autor, o historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari, em uma celebridade do mundo das palestras e tornou-se um fenômeno literário. Desde seu lançamento, em 2011, foi traduzido para 60 idiomas e vendeu mais de 16 milhões de exemplares. O caminho natural seria uma adaptação para o cinema ou para um seriado documental, mas veio antes uma robusta versão em quadrinhos. Assinado pelo próprio Harari em parceria com o desenhista francês Daniel Casanave e o roteirista belga David Vandermeulen, o primeiro dos quatro volumes acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras (cores de Claire Champion, tradução de Érico Assis, 248 páginas, R$ 69,80).
A HQ, criativa na dramaturgia e eficiente nas soluções visuais, pode até inspirar o futuro filme ou seriado baseado em Sapiens — os direitos foram adquiridos pelos cineastas Ridley Scott, de Blade Runner e Gladiador, e Asif Kapadia, vencedor do Oscar de melhor documentário por Amy (sobre a cantora Amy Winehouse) e realizador de títulos sobre Ayrton Senna e Diego Maradona. O anúncio foi feito na metade de 2018, mas de lá para cá não se sabe muito sobre o andamento do projeto.
No livro original (que está sendo relançado pela Companhia das Letras, com nova tradução, agora de Jorio Dauster), Harari, hoje com 44 anos, descreve como o Homo sapiens passou de primata insignificante a espécie dominante na Terra. Com uma narrativa clara e transdisciplinar — vai da biologia à religião, da física à economia, da história à química, tudo de forma integrada —, a obra cativou leitores como Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos, Bill Gates, fundador da Microsoft, e Mark Zuckerberg, dono do Facebook, do WhatsApp e do Instagram.
Chamada de Sapiens: O Nascimento da Humanidade, a adaptação em quadrinhos introduz uma série de personagens — reais ou fictícios — para dar dinamismo à narrativa e estimular o interesse pela ciência. A começar pelo próprio Harari, que atua como um esguio anfitrião em nossa viagem pelo tempo — nossa história já tem 2,5 milhões de anos, vale frisar. O autor interage, por exemplo, com sua sobrinha, Zoe, com o antropólogo britânico Robin Dunbar e com uma professora de biologia batizada de Saraswati, a deusa hindu da sabedoria e da aprendizagem. Duas das criações mais fascinantes são a detetive Lopez e o advogado Adamski. Ela quer provar que o Homo sapiens é o maior assassino em série de todos os tempos, responsável pela extinção de inúmeros animais; ele usará de seu talento argumentativo para tentar defender seus clientes, personalizados em um casal. É como se fosse um filme policial, com direito a perícia, reviravoltas e as célebres cenas de tribunal.
Dramatizações como essa, sempre com bom humor — acentuado pelo traço cartunesco de Casanave —, dão fluidez a uma trama extensa e complexa (e por vezes caudalosa no texto). Personagem de uma HQ dentro da HQ, Bill Pré-histórico, por exemplo, ilustra capítulos da evolução humana e os primeiros dilemas enfrentados pelos sapiens.
Recursos assim permitem a Harari e Vandermeulen serem tão abrangentes quanto didáticos. Em um momento, eles lançam mão de um jogo de cartas tipo Trunfo para apresentar as outras cinco espécies de humanos que habitaram o planeta: o Homo erectus ("Ponto forte: primeira a usar fogo e criar armas de caça"), o homem de Neandertal ("Ponto fraco: ruim de assessoria de imprensa e alvo constante de charges"), o homem de Luzon, descoberto em 2019, o homem de Denisova ("Muito sociável: ia para a cama com sapiens e neandertais") e um povo anão da Indonésia.
Em outro, uma super-heroína, a Dra. Ficção, explica como o seu superpoder é a base da civilização:
— O segredo do sucesso é a mitologia. Desconhecidos cooperam em grandes números se acreditarem nos mesmos mitos. Os sapiens mandam no mundo porque são os únicos animais que conseguem criar e acreditar em histórias fictícias.
Essa passagem exemplifica o diálogo entre disciplinas proposto por Yuval Noah Harari. Ao promover o encontro da Dra. Ficção com Armand Peugeot (1846-1915), francês que foi um dos pioneiros da indústria automobilística, Sapiens mistura antropologia, economia e filosofia e também estabelece uma ponte entre a vida pré-histórica e a vida contemporânea. "As empresas modernas não diferem muito das tribos antigas", afirma a super-heroína, antes de mostrar como o logotipo da Peugeot alude ao homem-leão de Stadel, uma escultura de 32 mil anos encontrada na Alemanha em 1939. Ou seja, sua descoberta aconteceu depois que a fábrica francesa elaborou sua identidade visual. Mas o simbolismo do leão já estava incrustado na imaginação coletiva, graças à tradição exclusivamente humana de contar histórias — a "mágica" que, diz a personagem, nos faz acreditar na existência de Deus, de uma nação, da Justiça ou do dinheiro. É a arte da realidade imaginada, que convive paralelamente com a realidade objetiva e pode provocar guerras, mas também o progresso. Uma ferramenta fundamental para a evolução do Homo sapiens.